quinta-feira, 21 de novembro de 2013

"Este fresco jardim", de Mário Cesariny

(Depois de alguns meses em que as leituras poéticas escassearam, será que o poema voltará a ser possível?)

Este fresco jardim era teu
Com suas terraças para o mundo.
Eram tuas as cores deste céu
E o pequeno pastor, ao fundo.

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

"Poema", de Mário Cesariny

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

"shafftsbury avenue", de Mário Cesariny

Vi um anão inglês e fiquei perturbado
desceu-me a chávena ao peito como quem sofre
julgava ter olhos para tudo e não os tive para isto
um anão inglês a atravessar uma rua inglesa
com um fato à inglesa muito curto
e a mãozinha inglesa a dar a dar

Eu que ainda ontem escrevi um poema
sobre os tamanhos fantasmas dos ingleses
as pernas de oceano dos ingleses
os braços florestais dos ingleses
dei um salto para o chão e entornei a bebida sobre o pedinte
que afinal também há nas casas de chá barato

«Dwarf! Dwarf! burning bright»
«In the forest of the night»

Que nome lhe darão na intimidade?
Vic? Jimmy? Christian Dwarf Road?
Deixá-lo-ão sair para o estrangeiro sem ser de circo?
Quem já viu um anão inglês em Sintra?
Mérida?
Ferrara?
Quem apertou o sexo aos ingleses
e lhes pôs estas caras de infinito langor
apertou também a ti?

«Did He smile His worke to see?»
«Did He who made the Lamb make thee?»


Claro que isto são maneiras

Não vivo como o outro, preso pela espinha
aos caudais da verdade.
De um lado Buckingham Palace
do outro o caso do
profundamente humano.
E seria inglês, este anão?

Não seria italiano?

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

"you are welcome to elsinore", de Mário Cesariny



Poema dito por Adolfo Luxúria Canibal, com música de António Rafael


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte    violar-nos    tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas    portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

domingo, 8 de setembro de 2013

(Regressando à poesia: um verso apenas)

Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar


Herberto Helder
(verso de "Poemacto", I, in Ou o poema contínuo; ed. Assírio & Alvim, 2004)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

"urgente", de Mário Cesariny

As bombas matam porque sofrem duma espécie de doença incurável
que as faz ganhar saúde quando as largam no ar
uma vez expostas à lei da gravidade
e por ela arrastadas para o mundo humano
as bombas precisam de explodir tal como uma criança precisa de urinar
até fazerem um lugar onde fiquem
que se não mova    que seja
como um direito a isso
ao pé do deus adulto que lhes deu comida

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

[a morte está tão atenta à tua força contra ela], de Herberto Helder

a morte está tão atenta à tua força contra ela,
enquanto ávido e acerbo cantas debaixo da água enviada,
¿acaso contes adormecê-la com a música turva?
quem se expõe à água ganha os poderes da nomeação mais simples,
apenas um duche, dizes,
há muito já alguém pediu o mesmo,
que ela recuasse,
ilhargas, ombros, dedos, o movimento dos cabelos,
o corpo solitário,
um canto último fundido ao início do canto,
mas a morte sabe que não há razão nunca,
e quem pede sabe que não pode,
teias de água fecham a tua grande nudez,
e dizes: um duche, apenas um inebriamento,
mas a morte não tem paciência para apurar um dialecto,
nada, só o arroubo táctil onde apoias a dor, desequilíbrio e medo,
enquanto falas do que nem ela entende,
agarrado à dura
dura
coluna de água

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

sábado, 17 de agosto de 2013

"Poema", de Mário Cesariny

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto        tão perto        tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

"Estação", de Mário Cesariny

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

[bic cristal preta doendo nas falangetas], de Herberto Helder

bic cristal preta doendo nas falangetas,
papel sobre a mesa,
a luz que vibra por cima, por baixo
a cadeira eléctrica que vibra,
e é isto:
electrocutado, luz sacudida no cabelo,
a beleza do corpo no centro da beleza do mundo:
pontos de ouro nas frutas,
frutas na luz escarpada,
clarões florais atrás de paredões de água,
água guardada no meio das fornalhas
- isto que, sentado eu na minha cadeira eléctrica,
entra a corrente por mim adentro e abala-me,
e com perícia artífice deixa no papel
o nexo estilístico entre
o terso, vívido, caótico e doce:
e o escrito, o carbonífero, o extinto,
o corpo

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

[do mundo que malmolha ou desolha não me defendo], de Herberto Helder

do mundo que malmolha ou desolha não me defendo,
nem de mim mesmo, à força
de morrer de mim na minha própria língua,
porque eu, o mundo e a língua
somos um só
desentendimento

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

[no mundo há poucos fenómenos do fogo], de Herberto Helder

no mundo há poucos fenómenos do fogo,
ar há pouco,
mas quem não queria criar uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
o tempo doendo, a mente doendo, a mão doendo,
o modo esplendor do verbo,
dentro, fundo, lento, essa língua
errada, soprada, atenta,
mas agora já nada me embebeda,
já não sinto nos dedos a pulsação da caneta,
a idade tornou-me louco,
sou múltiplo,
os grandes lençóis de ar sacudidos pelo fogo,
noutro tempo eu cobria-me com todo o ar desdobrado,
havia tanto fogo movido pelo ar dentro,
agora não tenho nada defronte,
não sinto o ritmo,
estou separado, inexpugnável, incógnito, pouco,
ninguém me toca,
não toco

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

[retira-se alguém um pouco atrás na noite], de Herberto Helder

retira-se alguém um pouco atrás na noite
para fazer uma escola da leveza,
sentar-se sobre si mesmo devorando uma laranja,
pronta,
colhida ao caos, que ela sim ilumina quem a usa,
e é isto: a laranja faz rodar os dedos, torna
leve, pelos dedos,
aquele que a levanta, e tão exacto gosto na língua,
tão transbordante,
dói no fino do frio açúcar,
e a laranja levanta tudo: luz e dedos, e a pessoa
com ferida na boca, o gosto
magoado até à pronúncia das expressões mais simples do idioma,
golpe a golpe,
como em estrangeiro brutal,
ou inexpugnável,
que faz ele? talha trémula, oh Deus! lavrada a pau virgem e folha de
                                                                                          [ouro,
mete-lhe os polegares pelos umbigos, devora-a, celebra, embebeda-
                                                                                             [se,
que escola de laranja terrestre não se pode mais que esta leveza


(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

"Pastelaria", de Mário Cesariny

Isaque Ferreira declama "Pastelaria", no programa televisivo Um Poema por Semana (RTP, 2011)

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao
        precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

(in Nobilíssima Visão; ed. Assírio & Alvim)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

[sou eu que te abro pela boca], de Herberto Helder

sou eu que te abro pela boca,
boca com boca,
metido em ti o sôpro até raiar-te a cara,
até que o meu soluço obscuro te cruze toda,
amo-te como se aprendesse desde não sei que morte,
ainda que doa o mundo,
a alegria

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

"Rua da Bica Duarte Belo", de Mário Cesariny

ESTES PRÉDIOS SÃO QUASE DE GRAÇA
diz a tabuleta encarnada
à gente que passa

E é que às vezes passa uma gente engraçada:
um estudante sem livros e ao lado
um operário desempregado

(in Nobilíssima Visão; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 23 de julho de 2013

"O poeta chorava...", de Mário Cesariny

O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
mas buscava uma estrela  (talvez a salvação?)
O poeta era sinceríssimo honesto total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões

E agora o poeta começou por rir
rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
depois comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro, é um tanto sinistro,
mas é inevitável, é um bem, é uma dádiva.

Tirai-lhe agora os versos que ele próprio despreza,
negai-lhe o amor que ele mesmo abandona,
caçai-o entre a multidão.
Subsistirá. É pior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele.
E matá-lo não é solução.
O poeta
O Poeta
O POETA
destroi-vos

(in Nobilíssima Visão; ed. Assírio & Alvim)

"Nuclear", de João Habitualmente

então os americanos
fizeram mais uma experiência
nuclear
a paisagem afundou-se em volta num segundo?

e o risco em fogo do sol pôr agora é o
risco em fogo do próprio fogo?

tudo enquanto
nós passeávamos em santa catarina
depois dum filme do marco ferreri
vê lá

(in De minha máquina com teu corpo; ed. Cadernos do Campo Alegre, 2010)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

"A queda do governo", de João Habitualmente

isto está tão bom
que tanto faz

pois é
o governo anterior não fez
já não há que pôr no prato
já não há que pôr no prego
combater o desemprego?
mas se o anterior não fez
pelo menos é o que este diz

isto está tão mau
que tanto faz o que se diz
que tanto faz quem fez
o governo que aí vem
é o futuro em marcha atrás
é o passado outra vez
é o anda nem desanda
já não há que pôr no prego
vou virar o bico ao prato
está a subir o desemprego
e a estalar o desacato
bem vês
ninguém põe os pontos nos iis
tanto faz o que se diz
tanto faz o que se fez
o governo caiu ontem
perco a mulher outra vez
queremos medidas de fundo
e um prego
e um prato
um pensamento profundo
um ministro embalsamado
um chouriço, um presunto
um doido bem penteado
e um careca varrido.
o que se faz
o que se diz
que o governo não fez
nem hoje nem há um mês
oh!, mas não vás
olha-me ali pr'aqueles cus
o quê? Tanto te faz?
ai o governo quer bis?
ora bolas! Mas bem vês
não há mas nem meio mas
ainda perco o emprego
hei-de comer-te no prato
hás-de te espetar no prego
ora mostra lá o umbigo
para quê? Isso é comigo
espera-me ali no café
espera-me no lá-de-lá
não te esqueças vai votar
neste que diz que fez
naquele que diz que faz
no outro que faz que diz
agarra-ta a uma voz
vai até ao infinito
agarra-te a um pau de giz
come chouriço e presunto
olha a queda do governo
olha o tombo do defunto
canta lá uma cantiga
grândolavilamorena

(in De minha máquina com teu corpo; ed. Cadernos do Campo Alegre, 2010)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

quinta-feira, 18 de julho de 2013

[A man said to the universe], de Stephen Crane

A man said to the universe:
"Sir I exist!"
"However," replied the universe,
"The fact has not created in me
A sense of obligation."

* * *

Um homem disse ao universo:
"Senhor, eu existo!"
"Todavia", replicou o universo,
"O facto não me criou
Qualquer sentido de obrigação."

(in O Sapo no Horizonte. Poemas de Stephen Crane; trad. Hélio Osvaldo Alves; ed. tradutor, 1999)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

[There was a man with tongue of wood], de Stephen Crane

There was a man with tongue of wood
Who essayed to sing
And in truth it was lamentable
But there was one who heard
The clip-clapper of this tongue of wood
And knew what the man
Wished to sing
And with that the singer was content.

* * *

Havia um homem que tinha uma língua de madeira
E que tentou cantar
E na verdade era um lamentável espetáculo
Mas houve alguém que ouviu
O matraquear da língua de madeira
E compreendeu o que o homem
Desejava cantar
E com isto o cantor se satisfez.

(in O Sapo no Horizonte. Poemas de Stephen Crane; trad. Hélio Osvaldo Alves; ed. tradutor, 1999)

[The wayfarer], de Stephen Crane

The wayfarer,
Perceiving the pathway to truth,
Was struck with astonishment.
It was thickly grown with weeds.
"Ha," he said,
"I see that none has passed here
In a long time."
Later he saw that each weed
Was a singular knife.
"Well," he mumbled at last,
"Doubtless there are other roads."

* * *

O viajante,
Apercebendo-se do caminho para a verdade
Ficou tomado de espanto.
Estava espessamente coberto de ervas.
"Ah", disse ele,
"Vejo que ninguém tem por cá passado
Há muito tempo."
Mais tarde verificou que cada erva
Era em si mesma uma faca.
"Bem", murmurou ele por fim,
"Sem dúvida que há outros caminhos."

(in O Sapo no Horizonte. Poemas de Stephen Crane; trad. Hélio Osvaldo Alves; ed. tradutor, 1999)

sexta-feira, 12 de julho de 2013

[Vivem em nós inúmeros], de Ricardo Reis

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

[De que outro amor então, amor, me falas], de Vergílio Alberto Vieira

De que outro amor então, amor, me falas
Quando tanto querer me desobriga
De querer-te, de querer-te, e tu te calas
Nesse jeito de outra vez ser rapariga?

Com que luz calma, amor, assim me embalas
E me cegas de paixão, amante, amiga,
De paixão, tal a escusa de esfolhá-las,
Rosas de inverno, ou só canção antiga?

Que o não saiba a noite que aí vem,
Pé ante pé como a sombra do caminho,
À hora em que ninguém vai a passar.

Que o não saiba eu, amor que a morte tem
Pressa, e arte de matar, devagarinho,
Quem ao partir, à noite, quer ficar.

(in Crescente Branco; ed. Campo das Letras, 2004)

quinta-feira, 11 de julho de 2013

[Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge], de Ricardo Reis

Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
        Mas finge sem fingires.
Nada speres que em ti já não exista,
        Cada um consigo é tudo.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
        Sorte se a sorte é dada.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

quarta-feira, 10 de julho de 2013

[os capítulos maiores da minha vida, suas músicas e palavras], de Herberto Helder

os capítulos maiores da minha vida, suas músicas e palavras,
esqueci-os todos:
octogenário apenas, e a morte só de pensá-la calo,
é claro que a olhei de frente no capítulo vigésimo,
mas não nunca nem jamais agora:
agora sou olhado, e estremeço
do incrível natural de ser olhado assim por ela

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sábado, 6 de julho de 2013

[Ainda não é noite, e já pelas ruas], de Vergílio Alberto Vieira

Ainda não é noite, e já pelas ruas
Descobre, o casario, um céu de águas paradas.
Pelos estendais de lassas cordas nuas
Batem peças de roupa nas fachadas.

No interior dos pátios, vozes cruas
Agitam sombras mortas, assustadas,
De velhos, cães, crianças, gatos, luas,
Mal dormidos por saguões, desvãos, escadas.

Com o passar das horas, os mais decididos
Escalam a cidade, procuram, perdidos,
Que por benfeitoria não lhes falte sorte.

Queira Deus que a vida, ao balcão de um bar,
Num golpe de mestre os leve a escapar
À navalha de aço e, por engano, à morte.

(in Crescente Branco; ed. Campo das Letras, 2004)

sexta-feira, 5 de julho de 2013

[traças devoram as linhas linha a linha dos livros], de Herberto Helder

traças devoram as linhas linha a linha dos livros,
o medo devora os dias dia a dia das vidas,
a idade exasperada é ir investindo nela:
a morte no gerúndio

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quinta-feira, 4 de julho de 2013

[O sol he grande, caem co a calma as aves], de Vergílio Alberto Vieira

O sol he grande, caem co a calma as aves*
Pelo espaço, lentas, vagas sobre a hora,
Vão na acalmia branca da demora,
Ao fim do dia, calmas, ternas, graves.

No vento passam, leves, e suaves,
Brancas como o tempo, pela tarde fora,
Caem co a calma as aves, logo agora
Ao fim do dia, calmas, ternas, graves.

Ainda à distância, esquece-as o céu
Pelo horizonte onde esperam ir ter
Levadas como sonhos brancos, breves.

Quando da noite cair o negro véu,
Hão-de saber então que vão morrer
No fim do dia, calmas, brancas, leves.

* Verso de Francisco Sá de Miranda.

(in Crescente Branco; ed. Campo das Letras, 2004) 

quarta-feira, 3 de julho de 2013

[A man feared that he might find an assassin], de Stephen Crane

A man feared that he might find an assassin;
Another that he might find a victim.
One was more wise than the other.

* * *

Um homem receava poder encontrar-se com um assassino.
Outro poder encontrar-se com uma vítima.
Um deles era mais sabedor do que o outro.

(in O Sapo no Horizonte. Poemas de Stephen Crane; trad. Hélio Osvaldo Alves; ed. tradutor, 1999)

terça-feira, 2 de julho de 2013

[irmãos humanos que depois de mim vivereis], de Herberto Helder

irmãos humanos que depois de mim vivereis,
eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,
fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,
porque nestas idades já não nunca,
nem leituras embrumadas,
nem crenças, nem política das formas, nem poemas no
                                                         futuro, nem
visitas extraterrestres de mulheres
exorbitantemente
nuas, cruas, sexuais, luminosas,
só vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,
é como trabalhar: stanca,
lavorare stanca,
queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e
                                                             das rosas,
e só tínhamos que perder a alma,
hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,
enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!
livros, je les ai lus tous, e como de costume a carne é
                                                         insondável,
estou mais pobre do que ao comêço,
e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,
meia volta, e já era,
irmãos futuros do génio de Villon e do meu género baixo,
não peço piedade, apenas peço:
não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,
inclitamente vergonhosa,
que em testamento vos deixou esta montanha de merda:
o mundo como vontade e representação que afinal é como
                                                                         era,
como há-de ser: alta,
alta montanha de merda - trepai por ela acima até à
                                                           vertigem,
merda eminentíssima:
daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,
cada qual obrando a sua própria magia:
merda que há-de medrar melhor na memória do mundo

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

segunda-feira, 1 de julho de 2013

[escrevi um curto poema trémulo e severo], de Herberto Helder

escrevi um curto poema trémulo e severo,
sete ou nove linhas,
e a densa delicadeza dessas linhas
era cortada por uma ferida cega,
mas aquilo que o alimentava e unia
- fundo, devastador, incompreensível -
nem eu sabia o que era:
talvez a técnica atenção da morte
vigiasse arte tão breve, tão furtiva

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 28 de junho de 2013

[There was crimson clash of war], de Stephen Crane

There was crimson clash of war.
Lands turned black and bare;
Women wept;
Babes ran, wondering.
There came one who understood not these things.
He said, "Why is this?"
Whereupon a million strove to answer him.
There was such intricate clamour of tongues,
That still the reason was not.

* * *

Havia um choque rubro de guerra.
As terras ficavam negras e áridas;
As mulheres choravam;
As crianças corriam, em espanto.
Chegou um que não compreendia estas coisas.
Disse ele, "Que razão há para isto?"
Ao dizer isto, um milhão esforçou-se por lhe dar resposta.
Foi tamanho o intrincado clamor das línguas,
Que a razão ficou por se saber.

 (in O Sapo no Horizonte. Poemas de Stephen Crane; trad. Hélio Osvaldo Alves; ed. tradutor, 1999)

quinta-feira, 27 de junho de 2013

("A poesia é uma das coisas que ainda não conseguiram tirar-nos", J.H.)

 Fotografia de Mário Vitória (www.mariovitoria.com), responsável pela gravura da capa e ilustrações interiores do livro

(O poemapossivel agradece ao poeta João Habitualmente a sua gentileza. Lidos ao acaso alguns versos, ainda que de forma algo leviana, a minha curiosidade foi despertada - uma leitura, portanto, para muito breve.)

[já não tenho mão com que escreva nem lâmpada], de Herberto Helder

já não tenho mão com que escreva nem lâmpada,
pois se me fundiu a alma,
já nada em mim sabe quanto não sei
da noite atrás da luz: livros, frutas na mesa, o relógio
                                                           que mede
minha turva eternidade
e o tempo da terra monstruosa,
já nada tenho com que morrer depressa,
excepto
tanta hora somada a nada:
acautela a tua dor que se não torne académica

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quarta-feira, 26 de junho de 2013

[Quero ignorado, e calmo], de Ricardo Reis

Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.

Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.

Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada spera
Tudo que vem é grato.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 25 de junho de 2013

[Eu amo agora], de Casimiro de Brito


Eu amo agora
eu amo a linguagem eu amo
a boca materna
mas o que eu mais amo
é o caos a nudez
o corpo original o
animal que devora
o outro animal
que se deixa comer
pelo seu desigual

Amo a língua
porque só ela
a língua de carne
a carne incendiada
pode inventar
o canto e a voz
da fonte muda

(in Amo Agora; ed. 4águas, 2009)

[um dia destes tenho o dia inteiro para morrer], de Herberto Helder

um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,
espero que não me doa,
um dia destes em todas as partes do corpo,
onde por enquanto ninguém sabe de que maneira,
um dia inteiro para morrer completamente,
quando a fruta com seus muitos vagares amadura,
o dom – que é um toque fundo na ferida da inteligência:
oh será que um poema entre todos pode ser absoluto?
:escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas
                                                                         linhas

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quinta-feira, 20 de junho de 2013

[Yes, I have a thousand tongues], de Stephen Crane

Yes, I have a thousand tongues,
And nine and ninety-nine lie.
Though I strive to use the one,
It will make no melody at my will,
But is dead in my mouth.

* * *

É verdade, tenho mil línguas,
E destas, novecentas e noventa e nove mentem.
Embora me esforce por usar aquela única,
À minha vontade não canta melodias,
Pois está-me morta dentro da boca.

(in O Sapo no Horizonte. Poemas de Stephen Crane; trad. Hélio Osvaldo Alves; ed. tradutor, 1999)

terça-feira, 18 de junho de 2013

[não me amputaram as pernas nem condenaram à fôrca], de Herberto Helder

não me amputaram as pernas nem condenaram à fôrca,
não disseram de mim:
ele inventou a rosa,
contudo quando acordei a minha mão estava em brasa,
contudo escrevi o poema cada vez mais curto para chegar
                                                           mais depressa,
escrevi-o tão directo que não fosse entendido,
nem em baixo,
nem em cima,
nem no sítio do umbigo que se liga ao sangue impuro,
nem no sítio da boca onde se nomeia o sopro,
e ficou assim:
económico, íntimo, anónimo
ou:
chaga das unhas cravadas na carne irreparável

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

segunda-feira, 17 de junho de 2013

[como se atira o dardo com o corpo todo], de Herberto Helder

como se atira o dardo com o corpo todo,
com a eternidade em não mais que nada,
e depois a abolição do tempo,
e então o que respira no corpo passa à vara,
e o que respira na vara passa depois à ponta,
tu não, tu já respiraste tudo pelo dardo fora,
mudo e cego e surdo,
e és um só ponto do alvo onde respiras todo,
e tudo respira nesse ponto,
em ti, veia da terra, oh
sangue sensível

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 14 de junho de 2013

O primeiro poema do novo livro de Herberto Helder

dos trabalhos do mundo corrompida
que servidões carrega a minha vida

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Dois poemas de Ricardo Reis, no dia do 125º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa


Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
        Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
        De penas.

* * *

Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 11 de junho de 2013

"A identidade dos contrários", de Edouard Roditi

Sonho que sou louco, e na minha loucura
Sou mais sensato que num sonho
Ou acordado, com medo que me tenham por louco
Meus companheiros de sonho.

Meu bom senso é diária loucura,
Para um mundo em vigília que atribui
Mais vigília e atenção mais funda
À razão do que a razão possui.

Sonho é minha vida diária, cada dia
Simula e dissimula até loucura
E razão serem ambas semelhantes,
E eu ajo enquanto sonho.

No sonho, o bom senso e a loucura,
Na loucura, o sonho e o dia a dia
Ligados, entre si todos semelhantes:
Sonhando ou acordado, sou louco e sou sensato.

(in As magias; poema mudado para português por Herberto Helder; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 10 de junho de 2013

"O Coração", de Stephen Crane

No deserto,
vi uma criatura nua, brutal,
que de cócoras na terra
tinha o seu próprio coração
nas mãos e comia...
Disse-lhe: «É bom, amigo?»
«É amargo - respondeu -,
amargo, mas gosto
porque é amargo
e porque é o meu coração».

(in As magias; poema mudado para português por Herberto Helder; ed. Assírio & Alvim)

domingo, 9 de junho de 2013

[O que sentimos, não o que é sentido], de Ricardo Reis

O que sentimos, não o que é sentido,
É o que temos. Claro, o inverno estreita.
        Como à sorte o acolhamos.
Haja inverno na terra, não na mente.
E, amor a amor, ou livro a livro, amemos
        Nossa lareira breve.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

quinta-feira, 6 de junho de 2013

[No mundo, só comigo, me deixaram], de Ricardo Reis

No mundo, só comigo, me deixaram
        Os Deuses que dispõem.
Não posso contra eles: o que deram
        Aceito sem mais nada.
Assim o trigo baixa ao vento, e, quando
        O vento cessa, ergue-se.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

quarta-feira, 5 de junho de 2013

"Valsa Fúnebre para Hermengarda", de Lêdo Ivo

Eis-me aqui junto da tua sepultura,
Hermengarda,
para chorar a carne pobre e pura
que nenhum de nós viu apodrecer.

Outros viriam lúcidos e enlutados,
e no entanto eu venho embriagado,
Hermengarda, eu venho embriagado.
E se pela manhã encontrarem a cruz
do teu túmulo derrubada no solo
não foi a noite, Hermengarda,
nem foi o vento.
Fui eu.

Quis amparar a minha embriaguez na tua cruz
e rolei pela terra em que repousas
coberta de margaridas e contudo triste.

Eis-me aqui junto da tua sepultura,
Hermengarda,
para chorar o nosso amor de sempre.

Não é a noite, Hermengarda,
nem é o vento.
Sou eu.

(in Fernando Savater, A Vida Eterna, ed. Dom Quixote, 2008)

terça-feira, 4 de junho de 2013

Poema do povo Dinca (Sudão), mudado para português por Herberto Helder

 à memória do meu avô

No tempo em que Deus criou todas as coisas,
criou o sol,
e o sol nasce, e morre, e volta a nascer;
criou a lua,
e a lua nasce, e morre, e volta a nascer;
criou as estrelas,
e as estrelas nascem, e morrem, e voltam a nascer;
criou o homem,
e o homem nasce, e morre, e não volta a nascer.

(in As magias; poema mudado para português por Herberto Helder; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 3 de junho de 2013

[o que não tenho tenho], de Pedro Tamen

o que não tenho tenho
a escuridão é luz
donde não chego venho
o que rasga seduz

tudo é páscoa de morte
tudo é páscoa de vida
tudo é fraco e é forte
a entrada é saída

tudo é contradição
de medo e destemor
tudo me é coração
meu amor meu amor

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

(A poesia é um vício caro - reprise)

(Um novo livro de Herberto Helder é indubitavelmente um acontecimento. A sua obra tem um papel de destaque na poesia portuguesa contemporânea, em parte - na minha modesta opinião - pela elevação e quase sacralização da poesia.
O poeta, com os seus 82 anos, tem publicado muito espaçadamente as suas últimas obras poéticas, impondo, a quem o publica, uma edição única com, por consequência, um número limitado de exemplares. Em 2008, com A Faca Não Corta o Fogo, os três mil exemplares impressos - sendo que em Portugal são raríssimas as edições de poesia a atingir o milhar - esgotaram em cerca de um mês (na altura falou-se que parte dos exemplares havia sido açambarcada por uns quantos alfarrabistas, em vista de maiores ganhos); este seu novo livro, Servidões, seguindo o mesmo modelo, foi anunciado em cima da data de lançamento e, numa pouco inocente e nada dissimulada estratégia de marketing, publicitado como passível de esgotar rapidamente - o que parece, de facto, destinado a acontecer.
Entretanto já pude ler na imprensa vários textos (noticias mas também recensões), e todos parecem passar ao lado de um aspeto - o preço (talvez por ser pouco literário falar destas coisas). O livro, com cerca de 130 páginas, custa vinte e dois euros. É certo que quase todos os livros de poesia são caros - comparados com os de outros géneros literários (frequentemente, livros de sessenta ou setenta páginas aparecem nas livrarias a dez euros) -, mas tenho que referir que o preço me parece algo exagerado. E aqui parece haver uma contradição (resta saber se com a conivência declarada do autor, ou somente com a sua tolerância ou indiferença), entre a pureza poética da escrita do autor e o caráter excessivamente mercantil (esta parcela da obra transforma-se num livro gritantemente preso à condição de produto, peça a ser vendida em busca do máximo lucro e/ou por vezes comprada como investimento a rentabilizar).
Seguramente que o livro não chegará a muitos dos potenciais leitores de Herberto Helder (talvez seja essa a sua vontade), muitos deles provavelmente com um interesse genuíno, sincero e - se se quiser - puro. O livro, que procurarei ler, poderá ser eventualmente estruturante no conjunto da obra, mas a contradição entre poesia e lucro mancha um pouco o acontecimento).

sexta-feira, 31 de maio de 2013

[Tão cedo passa tudo quanto passa!], de Ricardo Reis

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
        Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
        E cala. O mais é nada.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

quarta-feira, 29 de maio de 2013

"A edição inglesa", de Rui Pires Cabral

Na primavera de 1476
o jovem Leonardo da Vinci
escreveu no verso de uma carta
desesperada: If there is no love,
what then?
Escreveu-o, bem
entendido, no seu vernáculo
nativo – eu é que só tenho
a edição inglesa.

De quantas coisas
nesta vida, meu Deus, só tenho
a edição inglesa – quer dizer,
a precária, aproximativa
tradução? E que fazer
com estas noites de Junho,
se o amor, justamente,
é uma delas?

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

terça-feira, 28 de maio de 2013

[Que posso eu dar ao teu destino], de Fernando Pessoa

 (O número de arranque da revista Granta em Portugal inclui alguns poemas inéditos de Fernando Pessoa - os inéditos parecem não mais terminar, dirão os mais críticos, mas talvez estes aparecimentos ocasionais se devam ao facto de muitos dos papéis escrevinhados serem muito difíceis de decifrar. O poemapossivel publica um desses poemas, datado de 16/10/1929*)

Que posso eu dar ao teu destino? Nada.
Nem eu mesmo sou feito para dar.
Encontrei-te na curva de uma estrada
E esqueci-me da curva e do logar.

Se havias de mandar no meu andar,
Saberias a hora da chegada,
Nem tudo fica, como o chão, na estrada
E não ha mais que ver ou que buscar.

Perfeitamente conhecedor d'isto
O juizo humano em minha companhia
Não descobre a visão de que consisto,

E entre visões, aliás, a gloria passa
Como a ultima saudade que ha no dia
E o ultimo sonho, e a ultima desgraça.

* Se esta data estiver correta (existe a possibilidade de ser ler 6 e não 10 no mês), «(...) isto colocaria o poema em Outubro de 1929, mês em que Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz mantiveram correspondência, se namoraram ao telefone e se encontraram várias vezes».

(in revista "Granta", n.º 1; transcrição e notas de Jerónimo Pizarro e Carlos Pitella-Leite; ed. Tinta da China, Maio 2013)

segunda-feira, 27 de maio de 2013

[Não quero recordar nem conhecer-me], de Ricardo Reis

Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olhamos em quem somos.
        Ignorar que vivemos
        Cumpre bastante a vida.

Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
        Quando passa connosco,
        Que passamos com ela.

Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?),
        Melhor vida é a vida
        Que dura sem medir-se.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

domingo, 26 de maio de 2013

"Livre", de Manuel Paes

Na poesia sou livre
não preciso de acordo
livre no tema e na cor
na música, ritmo e tom

minhas palavras são livres
não servem qualquer senhor
conceito, sentença, noção

senhoras que saem de mim
só da minha solidão

se percam nos outros no mundo
nas pedras, rios e árvores
não precisam de voltar
pois jamais me encontrarão.

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

sexta-feira, 24 de maio de 2013

(Na estante, a aguardar leitura)

(Enquanto espero pela oportunidade de ler o novo livro, Servidões).

"Escrever depois de um dia de trabalho árduo", de Luís Filipe Parrado

Já não há maçãs
nem laranjas na fruteira

e o cesto do pão
está irremediavelmente vazio.

Ainda assim
escrevo,

ainda assim,
depois de um dia de trabalho árduo.

Depois de um dia de trabalho árduo
os poemas são de pele e osso

e parecem-se estranhamente
com listas de compras,

pão, laranjas,
maçãs,

coisas escritas à mão,
coisas de que precisamos para viver,

coisas em que pensamos só
quando nos fazem falta.

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

quarta-feira, 22 de maio de 2013

[Ardes-me no peito onde a custo], de Pedro Tamen

Ardes-me no peito onde a custo
o meu amor perpassa, e vai até
às loucuras do corpo
e às agruras da alma.
Ardes-me no minuto, no segundo,
na hora amaciada por olhos entrevistos,
ardes-me no sangue obstruído
e na certeza muda que me diz
que o coração existe.

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

[Guardarás numa caixinha virtual], de Pedro Tamen

Guardarás numa caixinha virtual
o que não fiz por ti,
a mão que não chegou à sobrancelha
que nem aflorou,
o beijo repetido nas palavras
sem que o tacto
o multiplicasse qual se desejava.

Nessa caixa de nada não tardará depois
a não estares só tu,
a não estar só eu,
a estarmos só os dois.

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

sexta-feira, 17 de maio de 2013

"Grande Circo de Montekarl", de José Miguel Silva

Não gosto especialmente de circo, mas como não há
mais nada e uma pessoa tem de se entreter com alguma
coisa, cá vim. Confesso que me atraiu sobretudo o número
da Grande Conflagração do Capitalismo, anunciado
em letras vermelhas no cartaz. A questão que se põe é:
a que horas começa? Pergunto, ninguém sabe.

Francamente, isto nem parece uma produção americana.
Estamos aqui de pé há sei lá quantas horas e nada sai
do ramerrão: entram palhaços, saem palhaços, uns mais
ricos, outros menos, mas todos iguais, todos sem graça.
Já nem os posso ver. E domadores de caniches,
burricos, cantilenas de latão. Isto põe-me doente.

Agora são os comedores de fogo. Que seca do caralho.
Só nos falta um mágico – pronto, para que é que eu falei.
Mais valia ter ficado em casa. Mas a culpa é minha –
bilhetes tão baratos, devia ter desconfiado. Podia tentar sair,
mas como, se nem consigo ver a porta? E sair para onde?
Para o frio da noite? Estamos bem fodidos.

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

[Como se estende a minha mão], de Pedro Tamen

Como se estende a minha mão
ao longe do cabelo
e à boca resoluta?
Os ares brilham de fogo
e o fogo aquece
esta pele que te dou
na pele que tu me dás.

Nem se pergunta mais:

no minuto milagre
é vasta a geografia
e a pele é uma.

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Poema de Pedro Tamen

Cantas. Não sei bem onde,
mas atravessas as paredes da casa
e do coração. O amor indetectado
lança notas da música da terra
– não a das estrelas, que não há.

Cantas. E o universo é uno,
é uno neste verso.

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

sexta-feira, 10 de maio de 2013

"Ainda a rainha depois de morta", de Armando Silva Carvalho

Arranca corações, esse punho cruel
que vem fustigando a história
dos amantes e chega até aos púlpitos, tronos,
e matérias de arte.

Na pedra burilada, os anjos muito agudos
pecam por desvelo.
Nas naves ressoa o bramar enrolado em raiva
da realeza sepulta:
eu amei-a viva, vocês venerem-na morta.

Foi um punho cruel.
Talvez houvesse um sexo absoluto em tanto movimento
de ouro, brocado,
soluços ébrios de temor ou de outra natureza
mais embevecida.

A história neste caso é sedutora:
traz o poder ao sol duns seios, à luz duma vagina,
abre a flor dos sentidos, desfeita
a golpes de espada,
de traição.

Aqui neste frio erguido ao redor das naves
a matéria humana
que percorre viva a tarde histórica
tem pressa de fugir
ao pesadelo:
o amor não mata, ninguém o assassina,
é ele e só ele que se expõe
já morto.

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Dois curtos poemas de António Ramos Rosa

O poema deve
aparecer
como um objecto supérfluo
e surpreendente

* * *


Vivi tanto
que já não tenho outra noção
de eternidade
que não seja a duração da minha vida

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Poema de Alberto Pimenta

ao que parece
parece que
os poetas
dizem o que dizem
diz um poeta

segue-se
ao que parece
segundo o mesmo poeta
que os poetas
dizem o que dizem
mas o que dizem
não quer dizer
o que dizem

os especialistas
uns dizem
que alguns poetas
querem dizer o que dizem
e outros
não

ora
quem sou eu
para discordar
de facto
também me parece
que muitos poetas
não querem dizer
o que dizem
quando dizem
o que querem

outros sim
quer dizer
pelo contrário
não dizem
o que querem
mas querem dizer
o que dizem

por exemplo
quando
le nouveau bec
d'assurancetourix

diz
que mais vale
uma ordem injusta
que a desordem
eu sei tu sabes ele sabe
que é isso
que le mec quer dizer

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

terça-feira, 30 de abril de 2013

(A generosidade de Casimiro de Brito)

(Uma generosa oferta de um poeta que muito admiro. A explorar muito em breve.)

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Poema de Al Berto, retirado de um dos seus diários

lentamente,
a solidão pernoitou no lume
florido dos trópicos e
na luz de Lisboa enterraste os mortos
para melhor cuidar dos vivos e esquecer a guerra

os poemas adormeceram no desassossego do corpo e da alma
depois veio o movimento errante
da noite e da longínqua África assola-te a memória.
foi o regresso ao cais de Alcântara
com a vida toda cheia de buracos de balas
e de saudade.

(excerto de "Diário 1995-1997", in Diários; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quinta-feira, 25 de abril de 2013

(Dia da Liberdade)

(Hoje o poemapossivel tem no pensamento todos aqueles poetas que, apesar da censura (no passado ou no presente, aqui ou noutros lugares), não deixaram de cantar).

quarta-feira, 24 de abril de 2013

"Foi para isso que os poetas foram feitos", de A. M. Pires Cabral

semear tempestades
e assegurar que cresçam
foi para isso que os poetas foram feitos

esgrimir com a mais idónea
das espadas: a coragem
foi para isso que os poetas foram feitos

namorar a perfeição
e às vezes alcançá-la
foi para isso que os poetas foram feitos

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

terça-feira, 23 de abril de 2013

(Dia Mundial do Livro)

(Pessoa escreveu: «Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / e não o fazer! / Ler é maçada, / estudar é nada. / O sol doira sem literatura. / O rio corre bem ou mal, / sem edição original. / (...) Livros são papéis pintados com tinta.»
Mas nada de interpretações literais (uma das coisas que os livros nos dão, se os soubermos escutar, é a capacidade de apurar o espírito crítico): Pessoa era um grande leitor, para além de criador literário - como poderia não amar os livros? Mas é no contrassenso que reside a piada: o poema fala de liberdade de não cumprir um dever; e, de facto, ler, quando é por imposição, pode ser maçada...
Mas também pode ser - para quem se aventure a tal, dispendendo algum tempo e rejeitando o ruído das coisas fúteis que o mundo gratuitamente nos dá - uma fonte de imenso prazer.
)

Ler permite ver mais longe.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

E ainda mais um poema de Casimiro de Brito

Vou comendo bago a bago
as uvas do teu corpo.
Jamais
saciado.
Dentro de mim és um vinho raro
que te devolvo
embriagado.

(in Amar a Vida Inteira; ed. Roma Editora, 2011)

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Poema de Casimiro de Brito

Respiro. Ar leve. Até parece
que não estou a morrer. A paisagem
precede o caos
por caminhos que ninguém sabe
se são inóspitos ou
hospitaleiros. Vou
na via do amor verdadeiro:
esse que se compara ao salto do mergulhador
que da rocha se lança ao mar. Quem o pode
travar?
Uns dirão: estás entre o chão e a água.
Outros diriam: entre nascer e morrer.
Intranquilo, o corpo respira.
A chuva que vai caindo
talvez conheça um pouco melhor
o caminho, o único caminho.

(in Amar a Vida Inteira; ed. Roma Editora, 2011)

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Um punhado mais de versos de Casimiro de Brito

Do amor, da sua página em branco,
sempre vivi, umas vezes da luz
que dele emana, e tanto me cegou,
outras vezes das penas escuras
que depois amanhecem,
e até cantei.
Caindo e cantando vou morrendo,
em arco me vou dobrando tão devagar
quanto posso: há um lume que me consome
e só em ti me perco e só ela,
a página branca do amor,
me salva.

(in Amar a Vida Inteira; ed. Roma Editora, 2011)