sábado, 17 de dezembro de 2011

(Cutting Branches For A Temporary Shelter)

(Hoje o poemapossivel oferece-vos um pouco de música: Penguin Cafe Orchestra, o original coletivo fundado por Simon Jeffes... Espero que esta - para mim - pequena preciosidade o possa ser também para os seguidores deste blogue).

sábado, 10 de dezembro de 2011

Dez versos de Amadeu Baptista

Falo com as cabeças de mármore
que interrogam sobre o rumo da viagem.
Tenho poucas palavras para responder.
Hei-de dizer que alguém soberano
me ordenou com a espada e a prata
e que apenas respondo pela minha cabeça,
também ela de mármore imaculado.
As estátuas quedam-se no mais absoluto silêncio
e esperam ler o destino no fundo dos meus olhos,
pura reverberação de pedra despolida.

(in Arte do Regresso; ed. Campo das Letras, 1999)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Um poema mais de Amadeu Baptista

Preso ao encantamento das crisálidas
e à multiplicação dos girinos
vejo-te ainda onde pequenos barcos
sulcam a névoa e sobre a água pairam

com a suave delicadeza da brancura.
Estende-se a tarde sob a ameixoeira.
A luz é o verdor com guarnição lilás
que escorre dos muros. E as aves são

cintilações que habitam as roseiras
que o mistério invade enquanto os gatos
andam à caça de algum pardal esparso.

Ao cimo das escadas uma estátua grega brilha.
Os deuses que nos falam estão próximo
do odor a limão que nos inebria.

(in Arte do Regresso; ed. Campo das Letras, 1999)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

(Seleção)

(Por vezes, guardo o bilhete do espetáculo a que assisti; ou aquele prospeto sobre algo que vi e gostei; ou ainda uma pedra porque naquele dia fez sentido; e este desdobrável que, quem sabe, poderá ser útil no futuro; e assim vou guardando tantas e tantas coisas, sem aparente sentido. Será talvez uma mania minha prender a memória a objetos; hoje, momentos antes de os destruir, um certa angústia se insinua: o risco de desmemorização associada ao ato de selecionar e destruir...)

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

(Em torno de um texto de Luiz Pacheco)


Excerto do texto "O que é o neo-abjeccionismo", de Luiz Pacheco (1925-2008), retirado do documentário "Luiz Pacheco - Mais um dia de noite", realizado por António José de Almeida.

E ainda mais uns versos de Rui Tinoco

é triste, o leitor entra na casa
do poema e eu estou
debruçado sobre a secretária,
às voltas com as frases.
não lhe falo.
e isto para sempre.

(in O Segundo Aceno; ed. Sempre-em-pé, 2011)

domingo, 4 de dezembro de 2011

"Da desigualdade dos homens", de Czeslaw Milosz

Não é verdade que somos carne
que por instante tagarela, move-se e ambiciona.

Enganadora são as praias apinhadas de corpos despidos
e as multidões nas escadas rolantes do metro.

Felizmente, não sabemos quem vai ao nosso lado.
Pode ser um herói, um santo ou um génio.

Pois a igualdade dos homens é uma ilusão
e as tabelas das estatísticas mentem.

A minha convicção de que a hierarquia se renova a cada dia
provém da necessidade pessoal de adoração.

Piso a terra que guarda as cinzas dos eleitos,
embora não durem mais que as dos outros.

Confesso a minha gratidão e admiração,
à falta de motivo para me envergonhar dos sentimentos nobres.

Oxalá seja eu seja digno de alta companhia
e siga com ela, segurando uma das abas do manto real.

(in Alguns gostam de poesia. Antologia; trad. Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves; ed. Cavalo de Ferro, 2004)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

"Alguns gostam de poesia", de Wislawa Szymborska



Alguns -
quer dizer nem todos.
Nem a maioria de todos, mas a minoria.
Excluindo escolas, onde se deve
e os próprios poetas,
serão talvez dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de massa,
gosta-se da lisonja e da cor azul,
gosta-se de um velho cachecol,
gosta-se de levar a sua avante,
gosta-se de fazer festas a um cão.

De poesia -
mas o que é a poesia?
Algumas respostas vagas
já foram dadas,
mas eu não sei e não sei, e a isto me agarro
como a um corrimão providencial.

(in Alguns gostam de poesia. Antologia; trad. Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves; ed. Cavalo de Ferro, 2004)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

"Os gatos", de Manuel António Pina

Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos

(in Como se desenha uma casa; ed. Assírio & Alvim, 2011)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

"As escadas", de Manuel António Pina

Toma, este é o meu corpo, o que sobe as escadas
em direcção à tua escuridão, deixando-me,
ou a alguma coisa menos tangível,
no seu lugar.

Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como terras
[estrangeiras.

(in Como se desenha uma casa; ed. Assírio & Alvim, 2011)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Uns versos mais de Rui Tinoco

às vezes olhas para mim,
às vezes prendes-me com a alma.
nem dás conta.
e eu fico assim às voltas
com a tua ausência, escrevendo
a palavra nua com o teu nome.

(in O Segundo Aceno; ed. Sempre-em-pé, 2011)

domingo, 20 de novembro de 2011

"Tu que desgraçaste", de Czesław Miłosz

Tu que um homem humilde desgraçaste,
rindo-te da sua desgraça,
tu que cercado por um bando de palhaços,
o bem com o mal misturaste.

Embora, perante ti, todos se inclinassem
atribuindo-te virtude e sabedoria,
e medalhas de ouro em tua homenagem cunhassem,
contentes por terem vivido mais um dia.

Não estejas seguro. O poeta lembrar-se-á.
Podes matá-lo, outro nascerá.
Actos e conversas assentes por escrito ficarão.

Melhor te seria a alvorada invernosa,
a corda e o ramo curvado pelo peso.

(in Alguns gostam de poesia. Antologia; trad. Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves; ed. Cavalo de Ferro, 2004)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Outro poema de Rui Tinoco

à medida que envelheceu
o poeta foi cortando versos:
achava que o silêncio
dizia de melhor maneira.
a certa altura saiu do
texto, caminhou
por uma ampla álea.
tornou-se minúsculo.
sentou-se lá no fundo
precisamente aí onde
o último verso ainda
estava por terminar.

(in O Segundo Aceno; ed. Sempre-em-pé, 2011)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

"Esperança", de Czesław Miłosz

Esperança surge, quando se acredita
Que a Terra não é um sonho, mas um corpo vivo,
Que não mentem o ouvido, o tacto, a visão
E que todas as coisas que aqui conhecias
São como um jardim visto do portão.

Entrar lá não se pode. Mas ele existe com rigor.
Se melhor olhássemos e com mais sabedoria,
No jardim do mundo uma nova flor
E mais do que uma estrela se avistaria.
Há quem diga que os olhos nos iludem
E que nada existe, apenas apresenta,
Mas justamente esses não têm esperança.
Pensam que ao virar as costas
O mundo desaparecerá de repente
Como que roubado por um delinquente.

(in Alguns gostam de poesia. Antologia; trad. Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves; ed. Cavalo de Ferro, 2004)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Para ti

(Não estava previsto. Poder-se-á dizer que aconteceu por acidente - qualquer coisa como: "Oh, não era isto que eu queria dizer..." Uma confusão. Taquicardia, medo. Aconteceu por acaso. Ainda bem que aconteceu).

domingo, 13 de novembro de 2011

"Os livros", de Manuel António Pina

É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo “eu” entre nós e nós?

(in Como se desenha uma casa; ed. Assírio & Alvim, 2011)

Outro terceto de Aurélio Porto

Bailando ao vento
dispersa novembro suas folhas
e nossos passos firmes.

(in Safra do Regresso; ed. Sempre-em-pé, 2011)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Poema de Rui Tinoco

devia ter-me levantado para escrever
aquele verso. a manhã ofereceu-me
apenas uma página em branco.
é verdade que o autor traz consigo
dois ou três temas para a vida
toda? que alimento tão escasso...
levanto-me e vou à janela:
se conseguir tocar um desses temas
com a minha alma, talvez
alcance um lugar qualquer para
observar o mundo...

(in O Segundo Aceno; ed. Sempre-em-pé, 2011)

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Terceto de Aurélio Porto (com uns dias de atraso)

Espreita o sol por entre os automóveis.
Calmos, os dois cavalos soltos
sob as nuvens de outubro.

(in Safra do Regresso; ed. Sempre-em-pé, 2011)

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Poema de Amadeu Baptista

A pedra azul ou o ónix que encontro em Chapultepec
é um princípio de fogo sem princípio nem fim.
Entre as mãos voará como uma ave de prata
ou a bandeira de vento desta pátria de luz.

A luz na minha boca é uma pedra sagrada,
comove-me o coração em Chapultepec.
O coração é uma pedra em brasa
nas insígnias do sol e da serpente.

O olhar é o fogo neste encontro infinito,
o rosto foi tocado pela luz do início.
Caminho e ardo nesta pedra sagrada
quando encontro o teu rosto em Chapultepec.

(in Arte do Regresso; ed. Campo das Letras, 1999)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

"Os livros", de João Pedro Messender

Os livros
convergem
para um centro
Magma
Lugar
de infinita
sede

(in A Cidade Incurável; ed. Caminho, 1999)

domingo, 30 de outubro de 2011

Poema de João Pedro Messender

Pousa as armas do Outono
e caminha ao longo da margem.
Um golpe de névoa
rouba-lhe
a ordem do dia. Por que não
esbanjar a sua ruína
partilhar as árvores descarnadas
sacudir a harmonia do mundo?

(in A Cidade Incurável; ed. Caminho, 1999)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

"Soneto", de Violante do Céu

(Vozes de uma dama desvanecida de dentro de uma sepultura, que fala a outra dama, que presumida entrou em uma igreja com os cuidados de ser vista e louvada de todos, e se assentou a um túmulo, que tinha este epitáfio, que leu curiosamente)

Ó tu, que com enganos divertida
Vives do que hás-de ser tão descuidada,
Aprende aqui lições de escarmentada,
Ostentarás acções de prevenida.

Considera, que em terra convertida
Jaz aqui a beleza mais louvada,
E que tudo o da vida é pó, é nada,
E que menos que nada a tua vida.

Considera, que a morte rigorosa
Não respeita beleza, nem juízo,
E que sendo tão certa é duvidosa:

Admite desse túmulo o aviso,
E vive do teu fim mais cuidadosa,
Pois sabes, que o teu fim é tão preciso.

(in Antologia da poesia do período barroco; ed. Moraes Editora, 1982)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

"T. de telefone", de Pedro Tiago

entende esta verdade,
coberta de musgo e metáforas: a literatura
já não é nada. dizem-me que não posso
escrever isto (isto), porque estou inserido na
contemporaneidade que, de tão aberta, literaria-
mente, me fecha todas as mãos e todos os braços.
e não posso usar metáforas nem lirismo nem posso
repetir os modernistas, porque o modernismo
já passou. e dizem-me que se quero ser lido
tenho de fazer assim, mas nunca entendo muito
bem o que seja isso. vou continuando a ver
velhos a dar milho e pão aos pombos, nos
parques e jardins públicos, ao sol e à chuva,
e isso chega-me. a literatura pode já não ser
nada, mas também, verdade seja dita,
não a pretendo nisto.

(in O Comportamento das Paisagens; ed. Artefacto, 2011)

sábado, 15 de outubro de 2011

"Uma conversa de almofada", de Pedro Tiago

revoltavas-te, as tuas costas dobradas,
inclinadas para a frente, os seios tocando
nas pernas enquanto procuravas uma meia
debaixo da cama e franzias as sobrancelhas
numa cara de criança que acorda tarde:
«não percebo porque é que a poesia
tem de ser tão absurda». e eu respondia-te
que tem de ser assim, porque o mundo
já está cheio de coisas concretas e práticas
que não fazem sentido nenhum.

(in O Comportamento das Paisagens; ed. Artefacto, 2011)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

(Entre parênteses)

(Entre parênteses podemos questionar tudo. E a verdade é que tenho questionado o sentido deste poemapossivel, tão sem mérito e, há que admiti-lo, tão estático. Nestes três anos de existência tem vindo a crescer, crescer, mas sem qualquer evolução aparente - a não ser, talvez, o acréscimo de novos autores. É legítimo, mais uma vez, pensar em dar-lhe um ponto final. Este fac-simile de leituras feitas, assumido desde o início como inglório (e porventura inútil) esforço, não serve ninguém. Os livros de poesia, já o escrevemos, se acabam por ser um luxo, são suficientes por si; e ainda que os leia, e, à minha maneira os tenha vindo a publicitar, dou por mim a pensar se os ditos livros não serão "suficientes por si" mesmo sem leitores. No outro dia li um curto texto sobre a inutilidade de escrever poemas; o autor [suponho que a si mesmo] dizia que era essa inutilidade que os tornava importantes, e auto-justificado estava o ato de os escrever. Bem, não sendo um teórico da poética, apenas me interrogo: a importância da poesia não acusará, por sua vez, a inutilidade deste blogue?)

domingo, 9 de outubro de 2011

"Previsão menos musical de um futuro", de Pedro Tiago

será possível um dia que os bancos de jardim
sejam levados para longe e nas praias muitos
corpos antigos desagúem, vindos de rios e de barcos
naufragados. será o tempo inteiro, completo, e na
televisão dir-se-á que os bancos faliram e que por
todo o mundo se sentem os efeitos do crash. será possível
que seja essa a altura em que a poesia fale
do crash e da falência dos bancos, no cinema passarão
fitas paradas de vida selvagem e durante duas horas
tentar-se-á incutir o amor pelo desabrochar de uma
planta. será o tempo de animais abandonados,
de papéis amarelos e vento nas ruas. um tempo
oblíquo, de muitos profetas que falam sem saber
que palavras usar.

(in O Comportamento das Paisagens; ed. Artefacto, 2011)

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

"Psicanálise da escrita", de Ana Luísa Amaral

Mesmo que fale de sol e de montanhas,
mesmo que cante os ínfimos espaços
ou as grandes verdades,
todo o poema
é sobre aquele
que sobre ele escreve

Quando os traços de si
parecem excluir-se das palavras,
mesmo assim é a si que se descreve
ao escrever-se no texto
que é excisão de si

Todo o poema
é um estado de paixão
cortejando o reflexo
daquele que o criou

Todo o poema
é sobre aquele
que sobre ele escreve
e assim se ama de forma desmedida,
à medida do verso onde a si se contempla
e em vertigem
se afoga

(in Vozes)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

(Ao despertar)

(Um Álvaro de Campos envelhecido lamenta-se por não mais escrever as extensas odes de outros tempos. Pensava nisto ontem à noite, enquanto tentava adormecer, e fazia paralelos impossíveis com a minha vida dissemelhante. Hoje, com outra intensidade de luz, ser-me-ia bastante um punhado certeiro de versos).

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"poema 2", de Ana Luísa Amaral

No meu braço
Cansado
O seu corpo macio
Adormecido

Um quarto do tamanho
Do meu corpo
- E o quarto
Preenchido

(poema integrante de "Outras Metamorfoses da Memória", in Vozes)

domingo, 2 de outubro de 2011

"Fenda", de Carlos Lopes Pires

Por alguma coisa estamos aqui,
subindo e descendo,
fazendo e fazendo,

de todo o lado carregando
o musgo e as pedras
para o poço.

e se alguma coisa tenho
para dar-te

ela está dentro de mim
e não a encontro
senão
na fenda

do meu coração.

(in Onde)

terça-feira, 27 de setembro de 2011

"Papagaio de papel", de Tiago Patrício

Uma flor mineral
sobreposta ao Sol

Um rio de papel
desagua no vento

Uma criança lança
um arco-íris ao mar

Uma bandeira
de um país feito de ar

(in O Livro das Aves)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Outro poema de Amadeu Baptista

Sou cúmplice porque viajo,
amo,
gravo o teu nome no coração da árvore,
as minhas raízes enlaçam-se nas tuas,
são a lua e o anjo
no êxtase do voo.

(in Arte do Regresso)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

(Um poema mais de Emily Dickinson)

Surgeons must be very careful
When they take the knife!
Underneath their fine incisions
Stirs the Culprit — Life!

* * *

Cirurgiões, tende cuidado
Com essa faca tão fina!
Sob o golpe tão subtil
Treme o culpado - é a Vida!

(in 80 Poemas de Emily Dickinson; trad. Jorge de Sena)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Poema de Amadeu Baptista

O mundo dez anos depois de aqui estarmos
será todas as coisas que agora sonhamos
no inefável mistério do desespero da noite.
O mundo daqui a dez anos será redondo
e as árvores possuirão o infinito azul
que perdemos na despojada sombra do caminho
que nos persegue.
Em dez anos o mundo há-de ser continuamente o mesmo,
mas o sol e a lua aproximarão a terra
da íntima ressonância do mundo
e todos os enigmas serão perceptíveis
na fascinada viagem dos teus olhos
com destino às coisas inexoráveis
e avassaladoramente eternas.

(in Arte do Regresso)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

"Livro de História", de Charles Simic

Um miúdo encontrou as suas páginas soltas
Numa rua movimentada
Deixou de jogar à bola
Para correr atrás delas.

Elas escaparam-se das suas mãos
Voando como borboletas.
Apenas pode entrever
Alguns nomes, uma data.

Nos arredores o vento
Fê-las subir.
Foram arrastadas sobre o depósito de pneus usados
Em direcção ao rio cinzento,

Onde afogam os gatinhos -
E a barcaça desliza,
Aquela que crismaram Vitória
De onde um aleijado acena.

(in Previsão de Tempo para Utopia e Arredores; trad. José Alberto Oliveira)

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

"Tapeçaria", de Charles Simic

(Um dos poemas mais interessantes que li nos últimos tempos. Opto por apenas publicar a excelente tradução de José Alberto Oliveira).

Está pendurada do céu até à terra.
Há nela árvores, cidades, rios,
porquinhos e luas. Num canto
a neve cai sobre uma carga de cavalaria,
noutro mulheres plantam arroz.

Também se pode ver:
um frango arrastado por uma raposa,
um casal nu na sua noite de núpcias,
uma coluna de fumo,
uma mulher de mau olhado cuspindo para um balde de leite.

O que está por trás dela?
- Espaço, um enorme espaço vazio.

E quem está agora a falar?
- Um homem que adormeceu com o chapéu posto.

O que acontece quando acordar?
- Ele irá a uma barbearia.
Raparão a sua barba, nariz, orelhas e cabelo,
para que se pareça com todos os outros.

(in Previsão de Tempo para Utopia e Arredores; trad. José Alberto Oliveira)

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

(O poema apropriado - de Emily Dickinson)

Volcanoes be in Sicily
And South America
I judge from my Geography.
Volcanoes nearer here
A Lava step at any time
Am I inclined to climb -
A Crater I may contemplate
Vesuvius at Home.

* * *

Os vulcões são na Sicília
E na América do Sul.
Diz-mo a minha geografia -
Vulcões mais perto daqui,
Encostas de Lava que eu
Queira inclinar-me a subir -
Cratera que eu possa ver -
Há um Vesúvio cá em casa.

(in 80 Poemas de Emily Dickinson; trad. Jorge de Sena)

domingo, 11 de setembro de 2011

Novamente, Emily Dickinson

I'm Nobody! Who are you?
Are you - Nobody - Too?
Then there's a pair of us!
Don't tell! they'd advertise - you know!

How dreary - to be - Somebody!
How public - like a Frog -
To tell one's name - the livelong June -
To an admiring Bog!

* * *

Não sou Ninguém! Quem és tu?
Também - tu não és - Ninguém?
Somos um par - nada digas!
Banir-nos-iam - não sabes?

Mas que horrível - ser-se - Alguém!
Uma Rã que o dia todo -
Coaxa em público o nome
Para quem a admira - o Lodo.

(in 80 Poemas de Emily Dickinson; trad. Jorge de Sena)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Dois poemas de Emily Dickinson (e duas traduções de Jorge de Sena)

I hide myself within my flower,
That fading from your Vase,
You, unsuspecting, feel for me
Almost a loneliness.

* * *

Escondo-me na minha flor,
Para que, murchando em teu Vaso,
tu, insciente, me procures -
Quase uma solidão.

* * *

Silence is all we dread.
There's Ransom in a Voice -
But Silence is Infinity.
Himself have not a face.

* * *

O Silêncio é o que tememos.
Há um Resgate na Voz -
Mas Silêncio é Infinidade.
Não tem sequer uma Face.

(in 80 Poemas de Emily Dickinson; trad. Jorge de Sena)

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Poema de Dora Ribeiro

no teu corpo descanso
todas as minhas dúvidas
nele encontro certezas definitivas
e
escuto falar
o meu próprio corpo

(in O poeta não existe)

domingo, 4 de setembro de 2011

Quatro versos de Emily Dickinson

Between My Country - and the Others -
There is a Sea -
But Flowers - negotiate between us -
As Ministry.

* * *

Entre o meu País - e os Outros -
Há um Mar -
Mas Flores - negoceiam entre nós -
Como embaixadas.

(in 80 Poemas de Emily Dickinson; trad. Jorge de Sena)

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Poema de Emily Dickinson

Afraid? Of whom am I afraid?
Not Death - for who is He?
The Porter of my Father's Lodge
As much abasheth me.

Of Life? 'Twere odd I fear [a] thing
That comprehendeth me
In one or more existences -
At Deity decree -

Of Resurrection? Is the East
Afraid to trust the Morn
With her fastidious forehead?
As soon impeach my Crown!

* * *

Ter Medo? De quem terei?
Não da Morte - quem é ela?
O Porteiro de meu Pai
Igualmente me atropela.

Da Vida? Seria cómico
Temer coisa que me inclui
Em uma ou mais existências -
Conforme Deus estatui.

De ressuscitar? O Oriente
Tem medo do Madrugar
Com sua fronte subtil
Mais me valera abdicar!

(in 80 Poemas de Emily Dickinson; trad. Jorge de Sena)

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

(Hoje)

(Hoje o poemapossivel não publica quaisquer versos, mas se o fizesse, seriam versos de amor. A razão? - mas será necessária uma razão para se divulgar um poema de amor? A título meramente hipotético, digamos que hoje (ainda que não mais do que nos outros dias) sentimos vontade de expressar (através do tal poema que não publicamos, mas que seguramente seria mui amoroso - e belo, muito belo...) o que sentimos. Mas que coisa?... E há a memória daqueles versos, tantas vezes citados, repetidos: "E quando ele entreabre os lábios para beijar...". Estas palavras, como esses versos que não publico (e que gostaria de ter escrito, sem que o talento chegue para tal), claro está, só podiam ser para ti - não hipoteticamente).

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Poema de Dora Ribeira

para ti

um beijo
pode durar
o tempo do mundo
quando
o silêncio
toma
sorrateiro
o seu lugar
e apaga o resto

(in O poeta não existe)

domingo, 14 de agosto de 2011

"Carícia divina", de Rosa Alice Branco

Cordeiro do Senhor nunca queiras escravo.
A hóstia branca que levamos à boca
é a mesma lua cheia que ilumina
o meu corpo a deslizar no teu.
Porque deus é amor e nós fiéis.
Porque nos fez com uma carícia
assim te acaricio e me cobres
de felicidade pela noite dentro.
Bendito seja quem assim ama.
Livrai-nos Senhor de todos os cordeiros
e dai-nos um ao outro cada dia.

(in Gado do Senhor)

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Soneto IX, dos "35 Sonnets", de Fernando Pessoa

Oh to be idle loving idleness!
But I am idle all in hate of me;
Ever in action's dream, in the false stress
Of purposed action never act to be.
Like a fierce beast self-penned in a bait-lair,
My will to act binds with excess my action,
Not-acting coils the thought with raged despair,
And acting rage doth paint despair distraction.
Like someone sinking in a treacherous sand,
Each gesture to deliver sinks the more;
The struggle avails not, and to raise no hand,
Though hut more slowly useless, we've no power.
Hence live I the dead life each day doth bring,
Repurposed for next day's repurposing.

* * *

Oh ociosa e querida ociosidade!
Mas eu me odeio por este ócio inato;
Sempre em sonho a acção e nunca a verdade
Da pensada acção que não chega a acto.

Como animal em si armadilhado
Meu querer agir entrava a minha acção;
O não agir me enreda angustiado
E o furor de agir acaba em dispersão.

Como quem na areia vil afunda o ser
E a cada gesto solto mais se enterra,
A luta nada vale e o não mover

Mais lento torna o fim, sem outra via
Assim vivo já morto numa espera,
Num intento adiado que se adia.

(in Poesia Inglesa, vol I; trad. Luísa Freire)

terça-feira, 9 de agosto de 2011

"Ofícios do mundo", de Rosa Alice Branco

Pias são as vacas
aspirando o chão com as manchas brancas
enquanto as negras erguem para o céu
um olhar bovino por cima da casa
onde o pasto secou há muito
no coração dos homens.
Só a vara lhes cabe na mão.
Ofício do mundo. Contar os minutos quilo a quilo.
Fazedores de carne, do livro de contas,
que contarão ao Senhor
no altar do sacrifício
que ele não saiba ou tenha sido?
No fim da noite bebem o vinho sagrado
de fato sombrio e rosto encoberto
pela lua. Cá fora trocam-se "mus":
mantras de amor sobre as estrelas.
Senhor, de quanta compaixão precisas
para apadrinhares o churrasco de domingo?

(in Gado do Senhor)

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

(The sheltering sky)


Ryuichi Sakamoto interpreta a sua composição "The Sheltering Sky"

"como utilizar palavras frescas", de Dora Ribeiro

como utilizar palavras frescas
ou etc

enxugue primeiro as próprias mãos
depois
mergulhe as palavras do mundo
ou
em qualquer vestígio dele
quando puder
recupere as melhores
e as mais urgentes

em caso de incêndio
assuma a responsabilidade

(in O poeta não existe)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Mais um poema de Pedro Tamen

Se a história se repete
que história se repete?
Que fungo se intromete
em quem a lê ou sente?

Será a mesma gente
ou outra, mas doente?
Hoje, tantos do tal,
terá nascido o mal?

Assim, nada é fatal
mais que a fatalidade:
a negra tempestade
é tempo e tempo, idade.

(in Retábulo das Matérias (1956-2001))

sábado, 30 de julho de 2011

"Um fado: palavras minhas", de Pedro Tamen

Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos louco de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
— que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.

(in Retábulo das Matérias (1956-2001))

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Excerto do «Livro do Desassossego»

Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ser espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma capaz de sofrer.
Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida… Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra coisa se não deve matar alguém… Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. E uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu?

(in Livro do Desassossego)

terça-feira, 26 de julho de 2011

(Ciclo Chaplin)

(Não percebo nada de cinema - tal como não percebo nada de poesia. Nestes últimos dias, sem que aparentemente nada tenha contribuído para isso, cresceu em mim a vontade de rever alguns dos principais filmes de Charlie Chaplin. Por vezes, há que voltar à base - e Chaplin, de certa forma, está nos primórdios do cinema (de uma era em que o cinema mudo, apesar da aparição do sonoro, estava no seu apogeu), assim como o está também nos primórdios do meu contacto com o cinema - mesmo que visto na televisão. Revi "O Circo" (de 1928) com imenso prazer, e concluí o que provavelmente qualquer um conclui: Chaplin foi um génio como realizador, como actor, e como comediante. Seguem-se os seguintes filmes: "O Garoto de Charlot", "A quimera do ouro", "Luzes da Cidade", "O Grande Ditador" e "Luzes da Ribalta ").

domingo, 24 de julho de 2011

"Fontes", de Pedro Tamen

Na fonte, a terra
dá-se à terra.
A água é um abraço
que se dá a beber
e que nos cerra.

(in Retábulo das Matérias (1956-2001))

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Dois poemas de Jorge Reis-Sá, do seu mais recente livro

Não sei possível vida mais desinteressante
do que esta. Levantar pela manhã sem um único
objectivo, levar o corpo à segunda repartição
de finanças, corrigir impressos de gente ainda

mais desinteressante do que eu. Assim o espero.
De nada vale esperar. Têm filhos, dois cães, um
gato, meia dúzia de cágados a rebolarem-se à vez
no esterco da água. Venho à tardinha para casa.

Poder-se-ia pensar que a tempo de me ser útil.
Mas vejo televisão só para esperar, penso
nas famílias dos cágados, no Tico e no Fofinho

com o pêlo afagado pelas crianças. Ligo a internet,
engato mais uma desesperada e rapidamente no seu
corpo estes pensamentos tão impuros são nada.

* * *

Terei a coragem de Pavese para deixar
tudo preparado e partir? Um diário
com todas as indicações de que o fim
se aproxima e a passos muito largos,
a reunião de toda a poesia num original
devidamente encapado e pronto a ser
editado na Einaudi. Trabalhar cansa.

Aceito. Mas cansa mais não fazer nada.

(in Mulher Moderna)

terça-feira, 19 de julho de 2011

"Verdes Anos", de Pedro Tamen

Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.

(in Retábulo das Matérias (1956-2001))

quinta-feira, 14 de julho de 2011

(Rabih Abou-Khalil e Ricardo Ribeiro)


Rabih Abou-Khalil (oud) e Ricardo Ribeiro (voz), interpretando "Como um rio" (do álbum «Em Português» do músico libanês) na Gala de Declaração Official das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo (2009)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Outro poema de Dora Ribeiro

o poeta não existe

fora a vulgaridade se amontoa em histórias originais

o poeta não existe

coisa do nada
inimigo dos vizinhos
e de todos os desejos com nome

ele sabe que inexiste
por isso frequenta a poesia

(in o poeta não existe)

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Poema de Dora Ribeiro

a memória é vigarista pela manhã
quando os sentidos transitam inquietos
e o rosto
sentado em gestos e sonos
acomoda-se às coisas
e se deixa levar pela imaginação

(in o poeta não existe)

terça-feira, 5 de julho de 2011

"Estes lugares", de Jorge Gomes Miranda


Estes lugares permanecerão
muito depois de o homem ter desaparecido:
Castro Laboreiro, Serra da Arrábida,
Monsaraz e as ilhas dos Açores.
Apesar da inclemência do vento,
da devastação das máquinas
e da delapidante indústria do turismo,
estes lugares permanecerão
no tempo.
Já se encontravam aqui: sílabas
de um livro escrito numa língua
que fomos deixando de compreender.
Podemos ir, extinguir-se a nossa voz
na sombra dos séculos,
estes lugares permanecerão:
sementes
ou coros inextinguíveis
de um relâmpago.

(in A Hora Perdida)

domingo, 3 de julho de 2011

Poema de Rui Caeiro

Um sinaleiro invisível manda parar o trânsito
há uma pausa brutal no bulício da cidade
Soa a campainha da porta, entras furtiva-
mente, sorris acanhada e logo começas
a abandonar sapatos e a despir a roupa em gestos
sacudidos. Grande é a importância que me dás
Por momentos tudo vais trocar pelas minhas mãos

(in O Quarto Azul e outros poemas)

sexta-feira, 1 de julho de 2011

(Water Dances)


Cena de "O Quarto do Filho", obra-prima do realizador Nanni Moretti (2001).

(Longe da poesia)

(Os últimos dias têm sido pobres em leituras poéticas; o poemapossivel, por consequência, tem conhecido dias mais silenciosos. Vejo nas livrarias os livros que vão sendo publicados, folheio-os, leio alguns versos ou mesmo uns quantos poemas, mas nunca os trago para casa. Numa estante, algures, ainda tenho uns quantos livros por abrir; à cabeceira, talvez uma meia dúzia por terminar. Longe da poesia, vou respirando).

segunda-feira, 13 de junho de 2011

123º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa


(No dia do 123º aniversário de Fernando Pessoa, a Google incluiu uma imagem - a partir da pintura de Almada Negreiros - no seu motor de busca).

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Versos do "Tao te Ching"

Num mundo de acordo com o Tao,
os cavalos fornecem estrume para os campos.
Num mundo sem o Tao,
os cavalos de guerra vivem junto das cidades.

O maior erro é desejar sem fim
e não saber o que basta.
Grande erro é o desejo de acumular.

Assim, saber refrear-te
é ter sempre o bastante.

(in Tao Te Ching. O livro do caminho e da sabedoria)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

"Retrato", de Manuel Machado

Este é o meu rosto e esta é a minha alma. Lede:
São uns olhos de tédio e uma boca de sede...
O resto... Nada... Vida... Coisas... Já se sabe...
Tanta estroinice, paixonetas... Nada grave.
Um pouco de loucura, um grão de poesia,
uma gota do vinho da melancolia...
Vícios? Todos. Nenhum... Nunca joguei, - não minto:
não gozo quanto ganho nem o perdido sinto.
Bebo, pra não negar minha terra, Sevilha,
meia dúzia de copos, mas só de manzanilla.
As mulheres..., sem ser um D. João - sou sincero! -,
tenho uma que me quer e outra a quem eu quero.

Acuso-me de não amar senão só vagamente
uma porção de coisas que encantam toda a gente...
A agilidade, o tino, a graça e a destreza,
mais que a vontade, a força e a grandeza...
Minha elegância é buscada, rebuscada. Asseguro
que antes o chic e o toureiro que o helénico e puro.
Um lampejo de sol e um riso em seu momento
prefiro à lua com seu langor nevoento.
Meio cigano e meio parisino - diz o vulgo -,
com Montmartre e com a Macarena comungo...
E, antes que um tal poeta, meu desejo primeiro
era ter sido um bom bandarilheiro.

É tarde... Ando à pressa. E o meu riso rasgado
é alegre, e não nego que estou muito apressado.

(in Alguns Cantares; trad. José Bento)

sexta-feira, 3 de junho de 2011

"Adelfos", de Manuel Machado

Eu sou como essas gentes que à minha terra vieram
- sou da estirpe moura, velha amiga do Sol -,
que tudo o que ganharam tudo logo perderam.
Tenho a alma de nardo do árabe espanhol.

Morreu minha vontade numa noite de lua
em que era muito belo não pensar nem querer...
Meu ideal é deitar-me, sem ilusão nenhuma...
De quando em quando, um beijo e um nome de mulher.

Em minha alma, irmã da tarde, não há contornos...
e a rosa simbólica de meu único amor
é uma flor que nasce em terras ignoradas
e que não possui forma, nem aroma, nem cor.

Beijos, - mas não os dar! Glória... - a que me devem!
Que tudo como brisa comigo venha ter!
Que as ondas me tragam e as ondas me levem,
e que jamais me forcem o caminho a escolher!

Ambição!, não a tenho. Amor!, nunca o senti.
Jamais ardi em fogo de fé ou gratidão.
Um vago anseio de arte eu tive... mas perdi.
Não adoro a virtude, nem me seduz devassidão.

Alta aristocracia tenho afirmado em tudo.
Nunca se ganham, herdam-se, elegância e brasão...
Mas o lema da casa, divisa de meu escudo,
é uma vaga nuvem que eclipsa um sol vão.

Nada vos peço. Não vos amo nem odeio. Com deixar-me,
o que faço por vós por mim fazer podeis...
Que a vida se dê ao esforço de matar-me,
que não me dou por mim ao esforço de viver!...

Morreu minha vontade numa noite de lua
em que era muito belo não pensar nem querer...
De quando em quando um beijo, sem ilusão nenhuma.
O generoso beijo que não vou devolver!

(in Alguns Cantares; trad. José Bento)

domingo, 29 de maio de 2011

"Dormes", de Mia Couto

Dormes.
Não há no mundo senão teu rosto.

O céu sob o tecto
espera comigo que despertes.

O meu único relógio
é a sombra imóvel no chão do quarto.

A curva da terra
em tua pálpebra desenhada:
no teu sono me embalas.

Dormes-me.

(in Tradutor de Chuvas)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Poema de «Te Quiero», de Carlos Lopes Pires

há muitos anos
que busco uma explicação
nos livros

nos olhos dos animais
nas pessoas que passam

no sentido que deve haver
em tudo o que se move

e até na chuva
e nas mãos que tocam a claridade
dos dias mais secretos

mas só tu és
a minha explicação

(in Te Quiero)

terça-feira, 17 de maio de 2011

"Azimuto a minha barca", de Pedro Tamen

Azimuto a minha barca
e o porto é onde já estou.
Esta chuva que me encharca
é a que nunca pingou.

Olho pra trás desasado
das asas que nunca tive.
Não há mudança de estado
na descida do declive.

Pedro que sou, reduzo
o sapato em que me meto
a moído parafuso
e a desgosto secreto.

Desalimento a certeza,
aperto a chave ao sorriso,
lavo a loiça, ponho a mesa,
falo faceto, agonizo.

(in Retábulo das Matérias, 1956-2001)

domingo, 15 de maio de 2011

"Flores", de Mia Couto

Ninguém
oferece flores.

A flor,
em sua fugaz existência,
já é oferenda.

Talvez, alguém,
de amor,
se ofereça em flor.

Mas só a semente
oferece flores.

(in Tradutor de Chuvas)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

"Nesta cadeira me sento", de Pedro Tamen

Nesta cadeira me sento,
é nela que me apresento,
mas menos do que me ausento,
tento, lamento, avelhento,
aqui me invento e rebento;
passo cordura de unguento
e alimento o alento
da vida de sono e pão.

Desta cadeira prossigo
para um outro nó pascigo,
já sem perigo nem abrigo,
amigo como inimigo,
com meu já perdido umbigo
de só nascer por castigo:
ali de vez eu te irrigo,
cintilante coração.

(in Retábulo das Matérias, 1956-2001)

domingo, 8 de maio de 2011

(Videotape)

(Para nós...)

Radiohead interpretando "Videotape", ao vivo em Tóquio (2008)

sábado, 7 de maio de 2011

"Deslição de Anatomia", de Mia Couto

Quase fui médico.
Cedo acreditei
ter inclinação.
Aconteceu, em menino,
frente aos compêndios escolares.
Fascinava-me,
no corpo humano,
o vocabulário em flor:
o suco gástrico,
o bolo alimentar,
o trânsito intestinal,
as papilas gustativas.

Ante o meu prematuro pasmo,
a professora vaticinou: vai ser médico!
Em casa, porém,
meu pai diagnosticou diverso:
não era a anatomia que me atraía.

Eu apenas amava as palavras.

Meu pai adivinhava.
E eu, de poesia, adoecia.

(in Tradutor de Chuvas)

sexta-feira, 6 de maio de 2011

"No mesmo sítio, a pedra", de Fernando Echevarría

No mesmo sítio, a pedra
perde o lugar.
E fica
à brisa, devagar,
e ao desamparo.
Mas quando a sombra passa nos teus lábios
a ordem volta rigorosa. A pedra
regressa funda a si.
E um rio corre
o movimento e o rumor da terra.

(in Obra Inacabada)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Soneto "Descalça de viver, andava sempre", de Fernando Echevarría

Descalça de viver, andava sempre.
Enchia a rua quando não passava.
Mas, se passava, desfazia o tempo
e apagava a rua, os homens e as lágrimas.

Nem ela própria já vivia dentro
de si. A roupa que levava
tinha uma cor de triste e pensamento
que não se sente e não se vê. E nada

dela se via que não fosse um vento.
Nem um silvo ou perfume a denunciava.
Sabia-se, de certo, que vivia

porque o dia, a certas horas se quedava
pronto, parado, como não sendo dia.
Ela, descalça de viver, passava...

(in Obra Inacabada)

domingo, 1 de maio de 2011

"Do amor", de Carlos Lopes Pires

Jamais um rio
consome mais que as suas margens.
Mas do amor,
quem dizer pode
as margens de cada rio?

(in A fuga das cidades. Os ensinamentos)

sábado, 30 de abril de 2011

"Dos pássaros", de Carlos Lopes Pires

Anda comigo ver os pássaros que vão pelas tardes
a conquistar o ar. Não trabalham nem fazem eiras
para descansar o outono ou arrefecer as chuvas.
Mas têm um certo saber quase perfeito,
quase nada,

e tão silêncio.

(in A fuga das cidades. Os ensinamentos)

sexta-feira, 29 de abril de 2011

"Seios e anseios", de Mia Couto

As vezes que morri
boca derramada entre os teus seios,
todas essas vezes
não me deram luto
porque, de mim, eu em ti nascia.

Todos esses abismos,
meu amor,
não me deram regresso.

Depois de ti,
não há caminhos.

Porque eu nasci
antes de haver vida,
depois de tu chegares.

(in Tradutor de Chuvas)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

"Cores de parto", de Mia Couto

(O título do novo livro de Mia Couto apropria-se ao dia de hoje)


O que eu vi,
à nascença, foi o céu.

No rasgão da retina,
a desatada luz: o meu segundo oceano.

Aprendi a ser cego
antes de, em linha e cor,
o mundo se revelar.

O que depois vi,
ainda sem saber que via,
foram as mãos.

Parteiros gestos
me ensinaram quanto,
das mãos,
a vida inteira vamos nascendo.

As mãos foram,
assim, o meu segundo ventre.

Luz e mãos
moldaram a impossível fronteira
entre oceano e ventre.

Luz e mãos
me consolaram
da incurável solidão de ter nascido.

(in Tradutor de Chuvas)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

"Dos avisos", de Carlos Lopes Pires

Cansaram-se de avisar e, um dia,
inesperadamente,
os poetas fugiram. Sabemos agora
que os poetas não se fecham nem prendem.
Matámos alguns e ficámos com os seus olhos grandes
a olhar sérios para nós. Mas os poetas nunca morrem,
pois fica sempre uma palavra ou outra
solta pelo chão a sangrar.

(in A fuga das cidades. Os ensinamentos)

terça-feira, 19 de abril de 2011

"Dos sinais", de Carlos Lopes Pires

(Poema lido e publicado em Tomar; a AJ lendo um livro aqui ao lado)

Expulsaram os pássaros da nossa rua.
Primeiro trouxeram máquinas escavadoras
e nuvens de pó,
depois chegaram carros bem vestidos
de onde saíam homens com papéis
e mãos vazias.
De uma ponta à outra da rua
serraram as árvores
que nos indicavam as sucessivas estações
dos nossos dias.
Como reconheceremos agora o outono?
Como saberemos da chegada dos sinais
se já nem os pássaros têm ramos

onde pousar as canções?

(in A fuga das cidades. Os ensinamentos)

sábado, 16 de abril de 2011

"Pequenos trabalhos de domingo", de Miguel-Manso

não saio antes
que tudo esteja pronto

a loiça a escorrer na cozinha
o aspirador cheio
a varanda lavada pelo dia
o rádio em off

nessa hora em que
a noite se aproxima devagar
do meu rosto
escrevo poema nenhum
falta-me língua

sento-me num banco do jardim
mais próximo
onde (que perfeição)

nada acontece

(in Resumo - a poesia em 2010)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

"Janela", de Miguel-Manso

dedico-me ao poema como um
homem velho se dedica a um vaso
com flores

(in Resumo - a poesia em 2010)

quarta-feira, 13 de abril de 2011

(Dias sem poesia)


Marc Ribot interpreta "Happiness is a Warm Gun", dos Beatles (ao vivo em Copenhaga, Abril de 2011)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

domingo, 3 de abril de 2011

"Com unhas e dentes", de Luís Filipe Parrado

Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.

(in Resumo - a poesia em 2010)

quarta-feira, 30 de março de 2011

(Circular)


Michael Nyman & Motion Trio interpretando "Miranda", em Trojka (2009)

terça-feira, 29 de março de 2011

Poema de Carlos Lopes Pires

quando as observo distantes
compreendo que já
tudo foi revelado às aves

que tudo sabem sobre
o abismo das asas e o ar

que as move

(in O Livro das Pequenas Orações)

segunda-feira, 28 de março de 2011

Versos de Lao Tzu

Não enchas a taça até transbordar.
É melhor que te detenhas antes.

Se afiares demasiado uma lâmina,
ele não durará muito tempo.

Se armazenares ouro em tua casa,
não conseguirás defendê-lo.

Se te vanglorias das riquezas e honrarias,
atrais sobre ti o infortúnio.

Quando o trabalho está terminado,
retira-te.

Esta a lei do céu.

(in Tao Te Ching. O livro do caminho e da sabedoria)

domingo, 27 de março de 2011

"Sombras", de Ana Paula Tavares

Tristezas os olhos
que não têm o brilho de contar,
estão riscados de sombras
como se o rasto dos caminhos
o longe da viagem
fosse, neles, deixando pistas.

Tristezas os olhos
de onde me olhas
detrás de um tempo passado,
o tempo das promessas antigas.

Teus olhos, amado,
são os olhos de alguém
que já morreu
e ainda não sabe.

(in Dizes-me coisas amargas como os frutos)

sábado, 26 de março de 2011

"Pulsação", de António Barahona

Perene é ser soneto: eis do futuro,
essa canção com oitocentos anos:
sábios, mil sons ecoam bons sopranos,
no timbre d’árias tensas de ouro puro.

Catorze versos a fundir degraus
(ligas de cobre e prata e elixir)
refeitos pra durar até que expire
seu último cantor, à flor do caos.

Perene é ser soneto, que reside
na cópia à rasa essencial do verbo:
tal como a roda, o cubo e o triângulo,

vem inscrito no código soberbo
de quem tece um casulo e sente livre
o sôpro do seu sangue num coágulo.

(in Resumo - a poesia em 2010)

sexta-feira, 25 de março de 2011

"Mais de uma vez", Carlos Lopes Pires

Chove. Mais de uma vez chove sobre os telhados.
E o vento vem, mais de uma vez vem,
e os mares e os barcos sobre os mares,
e os leitos dos rios enchem-se e mais de uma vez
se esvaziam e secam com o sol, e depois vem a chuva
e sol e sol. Adormece sobre a cadeira, a criança;
adormece um vez e outra.

Ao fundo o vento sopra entre as ervas, sopra;
no chão o amor acontece uma vez e outra,
mais de uma vez acontece.

(Só eu tenho uma vida apenas para te amar).

(in O livro dos cânticos (poemas de amor e ausência))

quinta-feira, 24 de março de 2011

"Portugal", de Alexandre O'Neill


Poema dito por Rui Spranger
("Um Poema por Semana", RTP)

"Tecidos", de Ana Paula Tavares

Meu corpo
é um tear vertical
onde deixaste cruzadas
as cores da tua vida: duas faixas um losango
marcas da peste.

Meu corpo
é uma floresta fechada
onde escolheste o caminho

Depois de te perderes
guardaste a chave e o provérbio.

(in Dizes-me coisas amargas como os frutos)

segunda-feira, 21 de março de 2011

(Dia Mundial da Poesia)

(Neste Dia Mundial da Poesia, o poemapossivel recomenda a obra "Resumo - a poesia 2010", antologia poética da responsabilidade de José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas. Esta obra inclui poemas de mais de quarenta poetas nacionais, que constam em livros e revistas publicados no ano passado. A totalidade das receitas desta antologia - que tem um preço absolutamente convidativo - reverte a favor da AMI - Assistência Médica Internacional).

segunda-feira, 14 de março de 2011

quinta-feira, 10 de março de 2011

"Sabia que existias", de Carlos Lopes Pires

Sim, sabia há muito que existias.
Sentia-o de manhã e à noite,
e pelo amanhecer,
mas era quando o silêncio e o vazio
vinham visitar-me ao entardecer
que mais nítidas eram essas notícias.

Coisas que a gente não sabe dizer ou definir,
que sabe serem redondas ou perfeitas
e nos visitam em lugares inesperados.

E no entanto sabia que existias.

Dizia-o o melro do telhado
no meio da cidade.
indiferente ao trânsito e ao ruído,
indiferente aos semáforos.

(in O livro dos cânticos (poemas de amor e ausência))

quarta-feira, 9 de março de 2011

(Carlos Lopes Pires)

(Para o poeta, com imensa gratidão pela sua simpatia e partilha)

(Tendo entrado em contacto com o responsável por uma editora que já não existe - Editorial Diferença (o logótipo era um lince-ibérico) -, descobri um poeta com uma longa obra).

Obra poética:
A invenção do tempo e Outros Poemas (1993)
Falar às Aves (1993)
O livro de pó (1994)
O livro dos salmos (1994)
Viver (1995, 2.ª ed. rev. 1997)
O Caminho do País Lilás (1995)
O livro dos cânticos (1995)
A poeira dos dias (1996)
A Última Ceia (1996, 2.ª ed. rev. 1997)
O perfume da flor (1997)
A fuga das cidades (1997)
De immenso (1997)
Todas as estrelas do mundo / O amor tem tantos nomes (em co-autoria com Maria Rosa Colaço) (1997, 2.ª ed. 1998)
Alguém que tu conheces (1998)
Imensitude (1999)
O sinal de Jonas (1999)
Nove poemas da Bretanha / Poemas de Amor e Estremadura (ed. em português-francês, em co-autoria com Jean-Albert Guénégan) (2000)
Em cada um (2000)
Onde (2001)
As Estações de Deus (2002)
O Livro das Pequenas Orações (2008)
Te quiero (2011)

sábado, 5 de março de 2011

(Duas leituras)

(Em leitura, dois livros muito diferentes. "Os Cantos de Maldoror" (tradução de Manuel de Freitas), publicados no século XIX, transportam-nos a um universo de perversidade, malvadez e violência. A prosa poética de Lautréamont consegue ser intensa e fascinante, decadente e perigosa. O segundo livro é muito diferente: trata-se de relato em verso datado do século XII (tradução de José Domingos Morais) sobre a viagem de S. Brandão, em busca do Paraíso. Recomendações? Nem tanto - apenas uma nota de rodapé sobre duas leituras que muito prazer me estão a dar).

sexta-feira, 4 de março de 2011

"Nocturno", de Luísa Dacosta

Não há estrelas
nem lua.

Só o lume duma traineirinha
é pirilampo na noite.

(in A Maresia e o Sargaço dos Dias)

quinta-feira, 3 de março de 2011

Outro poema de José Carlos González

Eram e foram e ainda são
Os humanos desejos e as vaidades

Eram e ainda erram os príncipes
Saídos do negrume __eles avançam

Torneios de florir lenços e rosas.

Pois somos homens no turbilhão dos astros.

(in No Alambique Escondido)

terça-feira, 1 de março de 2011

Poema (de livro emprestado) de José Carlos González


É dever sacro do fogo alastrar
Alar aos astros __falar
Em múltiplas línguas a origem
E sua própria consumação.

Ao homem é dever do fogo
Lavá-lo rubro aos metais
Moldar-lhe a mão rupestre
Até à mais branda penugem.

São do fogo e do homem conquistas
Os planaltos __sinais no deserto
E salvação no mar.

(in No Alambique Escondido)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

"Fatalidade", de Luísa Dacosta

Não sei tecer
senão espumas,
nuvens
e brumas.
Coisas breves,
leves,
que o vento desfaz.

Como prender-te
em teia tão frágil?

(in A Maresia e o Sargaço dos Dias)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

"Entretenimento", de Luísa Dacosta

Como quem procura conchas à beira do mar,
escolho as palavras para te dizer,
quando o silêncio dos teus braços
vestir o frio dos meus ombros.

(in A Maresia e o Sargaço dos Dias)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Uns quantos mais haikus de David Rodrigues

Passa um caracol
estendo agora os meus pés
ao não ver os dele.

* * *

Sereno e solene
rente ao chão como um elefante
segue o escaravelho.

(in Estações Sentidas. 111 Haiku)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

"Instinto", Luísa Dacosta

Para ti

Como a árvore sabe a floração
e o pássaro o rumo, certeiro, do voo
a minha sede de ti
sei.

(in A Maresia e o Sargaço dos Dias)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Surpreendendo-me com David Rodrigues

O lago não sabe
até que chegue o vento
quantas ondas tem.

(in Estações Sentidas. 111 Haiku)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Outra vez Elio Pecora

Desde sempre que abomino as armas,
não sei se por soberba ou se por medo,
e quanto aos cavaleiros
prefiro os cavalos.
Amo, sim, o amor
e continuo a procurá-lo
blasfemando e sofrendo,
como se não soubesse
que estou em servidão.

(in Poemas Escolhidos; trad. Simonetta Neto)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Poema de Elio Pecora


Os Etruscos deixaram túmulos pintados
dentro das cidades apagadas,
os Romanos ensoberbados
acabaram aterrorizados pelos Hunos,
catervas de escravos abeberaram-se
em nascentes de água verminosa,
mulheres esfarrapadas choraram,
choraram as rainhas de capa de seda.

Aquiles saiu da tenda
para vingar o amigo morto
por um herói mais incerto que feroz,
Penélope desfez a teia
para não descer e decidir-se,
Hamlet raciocinou com as sombras,
Faust escolheu o instante errado.

Eu, da minha parte,
sento-me vestido de escuro
e espero o telefonema que adie
para amanhã o meu problema.

(in Poemas Escolhidos; trad. Simonetta Neto)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Mais um haiku de David Rodrigues

Borboleta fugaz
o presente imprevisível
no teu cabelo.

(in Estações Sentidas. 111 Haiku)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Haiku de Lécio Ferreira

saudade -
e tudo o que tenho
é este búzio

(in De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea; org. David Rodrigues)

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

(Um farrapo de prosa)

Era um iletrado, não sabia ler mas era capaz de cantar e, tal como o iletrado rouxinol, era muitas vezes o autor da sua canção.

(in Herman Melville, Billy Bud)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Dois haikus outonais de David Rodrigues

A chuva partiu
rasto de cristais de sol
a pingar das árvores.

* * *

Com mil olhos negros
a oliveira olha mansa
as aves que passam.

(in Estações Sentidas. 111 Haiku)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

"Cisne", de Fernando Echevarría

Vem dos olhos de Deus. Espuma
e exemplo vivo de nave.
Só levemente o perfuma
a forma de neve e ave.
Devagar abre-lhe o lago
o coração. E ao afago
de tanta beleza pura,
ergue-se tanta alegria
que se ignora se o que dura
é a luz do cisne ou é dia.

(in Obra Inacabada)

domingo, 23 de janeiro de 2011

Dois haikus de Dinis Lapa

Giro o globo
o dedo indicador
perde-se no Pacífico

* * *

Eu
e o cacto
fartos da chuva

(in De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea; org. David Rodrigues)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Haiku de David Rodrigues

graves, na duna,
eu e uma lagartixa
olhamos o mar.

(in De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea; org. David Rodrigues)
(ver ainda o blogue do autor: http://haikuportugal.blogspot.com)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

(Terceiro aniversário)

(O poemapossivel faz hoje três anos - o mesmo é dizer que o poema tem sido possível nestes três últimos anos. O que permanece e o que mudou? Permanece - seguramente - o gosto pela poesia, pela descoberta de novos autores, pela leitura (não só de poesia) e pelos livros; permanece o esforço por valorizar "as pequenas coisas" da vida, por procurar as várias tonalidades da beleza, mesmo quando, seja por factores exógenos ou endógenos, o contexto é o menos apropriado. Entretanto, mudou a nossa vontade de ter uma voz poética própria (sim, um dia tivemos essa ilusão...); e mudou ainda (alargou-se) a nossa expectativa de futuro. O poemapossivel conheceu momentos de incerteza, ou de menor dinamismo que o desejável - reflectindo as condicionantes da vida do autor do blogue -, mas resistiu. O que esperamos é que resista um dia mais, e ao dia a seguir a esse, e aos outros que lhe seguirão.)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Poema de Luís Quintais

Leitor,
eclipsam-se
teus difusos pensamentos,
eclipsam-se
as palmeiras,
os retratos,
os ternos animais,
as casas, as mãos.

Leitor,
de mágoa e vento
são tuas mãos.

Condenado ao oco,
breve, estás.

(in Verso Antigo)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Muito apreciei estes dois versos de Luís Quintais


Visitam o aquário. De improváveis cores é a vida.
Ictiológicas formas observam-nos.

(versos do poema "The Lady of Shangai", in Verso Antigo)

Dois haikus de Liberto Cruz

Onda a onda
O mar
Se anuncia.

* * *

Cada onda do mar
É um oceano
De mensagens.

(in De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea; org. David Rodrigues)

Um punhado mais de versos de Casimiro de Brito

Há dois anos que dormimos
na minha cama de homem
só. Não sobra
um palmo. Como se fôssemos
um corpo estreito e cheio de
cumplicidade. Talvez
sejamos. Quando viajamos
há sempre duas camas nos quartos
de hotel. E sempre deixámos
uma delas
intacta.

(in Arte Pobre)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

"Abraço", de Fernando Echevarría

A muitos mares de mim
estás tu. Estás a dois passos.
Muralhas. Ferros. Tem fim
a música dos meus braços?
Nó. A morte vem aí.
Entras por mim, eu por ti
à força do amor. Já só
o exemplo e a luz do espaço.
Apertámos tanto o nó
que fomos além do abraço.

(in Obra Inacabada)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

(Minimal)


Dustin Wong interpreta excerto de "Infinite Love", em Nova Iorque, em 2010.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

[Deus enrolava-nos vagarosamente], de Paulo José Miranda

Deus enrolava-nos vagarosamente
para acabarmos entre os seus dedos.
A esse seu prazer chamou tempo
e onde havia dor nasciam cigarros.
Pensou no fogo como sendo belo
de modo a morrermos maravilhados.


(in O Tabaco de Deus)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Mais dois poemas de Casimiro de Brito

Há quantos anos me sento
a ver o mar? Amor
sem falhas.

* * *

Cidade caótica -
a borboleta atravessa a rua
com o sinal vermelho.

(in Arte Pobre)

domingo, 9 de janeiro de 2011

Haiku de Albano Martins

Diz o vento
ao mar: sem mim,
não podes voar.

(in De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea; org. David Rodrigues)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"Havia terra neles", de Paul Celan

Havia terra neles, e
cavavam.

Cavavam e cavavam, assim passava
o seu dia, a sua noite. E não louvavam a Deus,
que, segundo ouviam, queria tudo isto,
que, segundo ouviam, sabia tudo isto.

Cavavam e não ouviam mais nada;
não se tornavam sábios, não inventavam nenhuma canção,
não imaginavam qualquer espécie de linguagem.
Cavavam.

Veio um silêncio, veio também uma tempestade,
vieram os mares todos.
Eu cavo, tu cavas, e o verme cava também,
e aquilo que ali canta diz: eles cavam.

Oh um, oh nenhum, oh ninguém, oh tu:
para onde íamos que não fomos para lado nenhum?
Oh tu cavas e eu cavo, cavo-me para chegar a ti,
e no dedo acorda-nos o anel.

(in Casimiro de Brito, Na Barca do Coração; trad. Yvette K. Centeno)