segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Versos de Casimiro de Brito


Como sou frágil - penso,
olhando o rio.

Volátil o meu sangue,
um fio.

E regresso ao corpo (apenas
sangue) do rio.

(in Arte Pobre)

sábado, 27 de novembro de 2010

Poema de Pedro Tamen

Agora, se pode dizer-se agora, ou pôr-do-sol,
ou nascer da manhã, seja o que for: agora
podes ressonhar o que talvez sonhaste
quando o sol se punha realmente, e a manhã
de verdade nascia quando mal o sonhavas.

Mas, nesta operação de refazer sonhado
o que sonhado foi, o que não podes
é fazer real de qualquer jeito, sequer regar
a pequena planta que espera ser de ti.

(in Retábulo das Matérias, 1956-2001)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

"O vento na ilha", de Pablo Neruda

O vento é um cavalo:
ouve como ele corre
pelo mar, pelo céu.

Quer levar-me: escuta
como percorre o mundo
para levar-me para longe.

Esconde-me em teus braços
por esta noite apenas,
enquanto a chuva abre
contra o mar e contra a terra
a sua boca inumerável.

Escuta como o vento
me chama galopando
para levar-me para longe.

Com tua fronte na minha
e na minha a tua boca,
atados os nossos corpos
ao amor que nos abrasa,
deixa que o vento passe
sem que possa levar-me.

Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e procure
galopando na sombra,
enquanto eu, submerso
sob os teus grandes olhos,
por esta noite apenas
descansarei, meu amor.

(in Os Versos do Capitão; trad. Albano Martins)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Haiku de Issa Kobayashi

Caracol,
lento, lento, lento - sobe
o Fuji.

(in O Bebedor Nocturno; poema mudados para português por Herberto Helder)

sábado, 20 de novembro de 2010

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

"Os teus pés", de Pablo Neruda


Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram voo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.

(in Os Versos do Capitão; trad. Albano Martins)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

(Stabat Mater)


Nathalie Stutzmann interpreta, com o emsemble ORFEO 55, um extrato da obra "Stabat Mater", de Antonio Vivaldi, em concerto realizado em 2010 na Sala Gaveau (Paris)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

"Porta", de Pedro Mexia

Quando deixamos ir atrás de nós a porta
puxada por molas e dobradiças,
pode haver alguém que venha depois
e com um gesto queira entrar ou sair
e ampare a porta
e sobre esse gesto sabemos muito pouco.

(in Duplo Império)

domingo, 14 de novembro de 2010

Poema Zen

As palavras não fazem o homem compreender,
é preciso fazer-se homem para entender as palavras.

(in O Bebedor Nocturno; poema mudado para português por Herberto Helder)

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

"Portugal", de Jorge Sousa Braga (em tempos de crise)

Poema de Jorge Sousa Braga dito por Miguel Borges (ideia: Nuno Artur Silva; produção: "Até ao Fim do Mundo"; imagem: João Filipe Rodrigues; realização: Ricardo Espírito Santo)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

"Há nomes que ficam", de Pedro Mexia

Há nomes que ficam, sem préstimo, nas agendas,
transitam de ano para ano por inerência
ou desleixo, por vezes o nome próprio
é uma referência obscura, e nunca houve apelido.
Os números, em poucos anos,
passam de mnemónicas a criptogramas,
indicam sem dúvida que nos cruzámos
com gente que se cruza connosco,
que trocámos telefones como se
trocássemos alguma coisa,
mas tudo muda, os conhecidos
tornam-se amigos e depois desconhecidos.
Estes nomes, posso riscá-los
como se fosse velho e eles mortos,
mas os números, como uma praga,
acumulam-se, escritos
com tintas diferentes
e por vezes nas letras erradas.
Não posso desfazer-me das agendas
nem começar uma todos os anos,
mas já não sou o mesmo:
os números observaram as minhas idades
e talvez pudesse agora marcar este
que não me diz nada
e contar tudo
a alguém que não se lembra de mim.

(in Duplo Império)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

"As gavetas", de Pedro Mexia

Com gratidão e admiração, ao Pedro Mexia, por este seu primeiro livro.
Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.

(in Duplo Império)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

"Nascemos para o sono"

Nascemos para o sono,
nascemos para o sonho.
Não foi para viver que viemos sobre a terra.
Breve apenas seremos erva que reverdece:
verdes os corações e as pétalas estendidas.
Porque o corpo é uma flor muito fresca e mortal.

(Poesia mexicana do ciclo Nauatle, in O Bebedor Nocturno; poema mudado para português por Herberto Helder)

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Dois versos do "Cântico dos Cânticos"

Beije-me ele com os beijos da sua boca.
Amor melhor do que o vinho.

(in O Bebedor Nocturno; poema mudados para português por Herberto Helder)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

"Epigrama", de Bocage

Levando um velho avarento
Uma pedrada n'um olho,
Pôs-se-lhe no mesmo instante
Tamanho como um repolho.

Certo doutor, não das dúzias,
Mas sim médico perfeito,
Dez moedas lhe pedia
Para o livrar do defeito.

"Dez moedas! (Diz o avaro)
Meu sangue não desperdiço:
Dez moedas por um olho!
O outro dou eu por isso."

(in Fábulas de Bocage)

Herberto Helder reeditado

Capa de livros de Herberto Helder (de poemas mudados para português) recentemente reeditado. A edição original data de 1968.