segunda-feira, 29 de junho de 2015

[estes poemas que chegam], de Herberto Helder

estes poemas que chegam
do meio da escuridão
de que ficamos incertos
se têem autor ou não
poemas às vezes perto
da nossa própria razão
que nos podem fazer ver
o dentro da nossa morte
as forças fora de nós
e a matéria da voz
fabricada no mais fundo
de outro silêncio do mundo
que serão eles senão
uma imensidão de voz
que vem na terra calada
do lado da solidão
estes poemas que avançam
no meio da escuridão
até não serem mais nada
que lápis papel e mão
e esta tremenda atenção
este nada
uma cegueira que apaga
a luz por trás de outra mão
tudo o que acende e me apaga
alumiação de mais nada
que a mão parada
alumiação então
de que esta mão me conduz
por descaminhos de luz
ao centro da escuridão
que é fácil a rima em ão
difícil é ver se a luz
rima ou não rima com a mão

(in Poemas Canhotos; ed. Porto Editora, 2015)

sábado, 27 de junho de 2015

"Resgate", de Manuel Alegre

Há qualquer coisa aqui de que não gostam
da terra das pessoas ou talvez
deles próprios
cortam isto e aquilo e sobretudo
cortam em nós
culpados sem sabermos de quê
transformados em números estatísticas
défices de vida e de sonho
dívida pública dívida
de alma
há qualquer coisa em nós de que não gostam
talvez o riso esse
desperdício.
Trazem palavras de outra língua
e quando falam a boca não tem lábios
trazem sermões e regras e dias sem futuro
nós pecadores do Sul nos confessamos
amamos a terra o vinho o sol o mar
amamos o amor e não pedimos desculpa.

Por isso podem cortar
punir
tirar a música às vogais
recrutar quem os sirva
não podem cortar o Verão
nem o azul que mora
aqui
não podem cortar quem somos.

(in Bairro Ocidental; ed. D. Quixote, 2015)

sexta-feira, 26 de junho de 2015

[os que dizem como deve ser], de Herberto Helder

os que dizem como deve ser:
e forçosamente não se aclara nada,
se é que alguma vez houve alguma coisa
ouvida ou entendida ou revelada
¡e o que eles devoraram de alfarroba,
e o desperdício de água clara!

(in Poemas Canhotos; ed. Porto editora, 2015)

quinta-feira, 25 de junho de 2015

[em boa verdade houve um tempo em que tive uma ou duas artes], de Herberto Helder

em boa verdade houve um tempo em que tive uma ou duas artes
[poéticas
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica e traço meia
[dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei a encher
[umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse sob as
[minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevi, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a sua própria
[profundidade

(in Poemas Canhotos; ed. Porto Editora, 2015)

terça-feira, 16 de junho de 2015

"Pátria minha", de Manuel Alegre

Entre nós e o futuro há arame farpado
levaram o que se via além de nós
não resta mais que a ponta do nariz
como esperar agora o inesperado?
Somos do Sul e o saldo somos nós
contra o bezerro de oiro o teu quadrado
o poema tem de ser o teu país.

Entre nós e amanhã há uma taxa de juro
uma empresa de rating Bruxelas Berlim
entre hoje e o futuro há outra vez um muro
resgate é a palavra que nos diz
tens de explodir o não dentro do sim
não te feches em torres de marfim
o poema tem de ser o teu país.

Toutinegras virão cantar contigo
e os melros que se escondem nas vogais
e o morse aflito e rouco da perdiz
nas sílabas que avisam do perigo
e as lanças das consoantes e os sinais
por dentro das palavras que mais
do que palavras são o teu país.

Oiço dizer Europa mas Europa
é uma nau a chegar ao nunca visto
Flor de la Mar: e o Mundo em tua boca.
Navegação: madre das cousas. Isto
é Europa. País no mar. E vento à popa.
Não este não arrisco logo existo
de cócoras à espera de uma sopa.

Um cheiro de jasmim a brisa nos salgueiros
entre nós e o futuro um silêncio nos diz.
O saldo somos nós: trinta dinheiros.
Pátria minha quem foi que te não quis?
Entre nós e o futuro a terra e a raiz
e a Flor de la Mar e os velhos marinheiros
e o poema onde respira o teu país.

(in O Bairro Ocidental; ed. D. Quixote, 2015)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

[¿que interessa fazer a barba se é tudo para cremar], de Herberto Helder

¿que interessa fazer a barba se é tudo para cremar,
desde as unhas dos pés aos espelhos soberanos -
Leonardo, Camões, Newton, Amadeus Mozart,
et coetera
que interessa?
uma mulher bem temperada - disse o cozinheiro antropófago,
mãos de assasino sobre as teclas, e algo de muito
puro se criava
- ó mundo, deixa-te entender um pouco
desde nascer a morrer que não entendo nada,
só a música que me embebeda,
mas quero ir mais depressa,
nada de estelas de pedra aproveitadas de um pequeno meteoro
[áspero como o teu nome,
forte como o teu emprego na morte,
e súbito como esse mesmo nome:
ou então nome que nasce:
poalha cega que lentamente assenta no chão raso,
nome contrário

(in Poemas Canhotos; ed. Porto Editora, 2015)

quarta-feira, 10 de junho de 2015

"Arte de pontaria", de Manuel Alegre

Invadiram os séculos que estão dentro de nós
invadiram a língua o canto o ritmo
antes fossem exércitos fardados
antes as botas de um invasor visível
não estes missionários da nova fé
com seus mercados sobre os nossos ombros
e seus discursos de sílabas pontiagudas
para gente de espinha de curvar.
Quando eles falam o céu fica cinzento
e há um rasto de cinza e desamparo.
Apetece pegar no poema
e disparar.

(in O Bairro Ocidental; ed. D. Quixote, 2015)