sexta-feira, 26 de junho de 2009

Excerto do poema "Louvor da Dúvida", de Bertold Brecht

(...)
Rodeado de berros de comando, examinado
Na sua capacidade por médicos barbudos, inspeccionado
Por entes radiosos com distintivos áureos, admoestado
Por solenes sacerdotes que lhe dão nas orelhas com um livro escrito [pelo próprio Deus,
Ensinado
Por mestres-escolas impacientes, o pobre fica a ouvir
Que o mundo é o melhor dos mundos e que o buraco
No tecto do seu quarto foi planeado pelo próprio Deus.
Na verdade, é-lhe muito difícil
Duvidar deste mundo.
(...)

(in Poemas; trad. Paulo Quintela)

(Ondas)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Um último poema de «Arte de Bem Morrer», de Casimiro de Brito

Levantei-me de madrugada.
Reguei a buganvília.
O mundo já não é o que era.

(in Arte de Bem Morrer)

"Ícaro", de Miguel Torga

O sol dos sonhos derreteu-lhe as asas
E caiu lá do céu onde voava
Ao rés-do-chão da vida.
A um mar sem ondas onde navegava
A paz rasteira nunca desmentida...

Mas ainda dorida
No seio sedativo da planura,
A alma já lhe pede, impenitente,
A graça urgente
De uma nova aventura.

(in Poesia Completa, vol. II)

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Um poema de Casimiro de Brito, que versa o morrer de amor e desamor

Esta manhã não lavei os olhos -
pensei em ti.

*

Se o teu ouvido se fechou à minha boca
poderei escrever ainda poemas de amor?
A arte de amar não me serve para nada.

*

Um fogo em luz transformado.
Subitamente, a sombra.

*

Há dias em que morro de amor.
Nos outros, de tão desamado,
morro um pouco mais.

(in Arte de Bem Morrer)

terça-feira, 23 de junho de 2009

(Em escuta)


Masada Sextet, no Festival de Marciac (2008), interpretando "Haamiah"
(John Zorn - saxofone; Dave Douglas -trompete; Uri Caine - piano; Greg Cohen - contrabaixo; Joey Baron - bateria; Cyro Baptista - percussão)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Hoje, apenas um verso


No teu abraço não tenho pressas

(verso do poema "Tela", in Pela Geografia do Prazer)

domingo, 21 de junho de 2009

"Quem é o teu inimigo?", de Bertold Brecht

Ao faminto, que te tirou
O último pão, olha-lo como inimigo.
Mas ao ladrão que nunca passou fome
Não lhe saltas às goelas.

(in Poemas; trad. Paulo Quintela)

quinta-feira, 18 de junho de 2009

"Quando o crime vem como a chuva cai", de Bertold Brecht

Como alguém que chega com uma carta importante ao ghichet depois das horas regulamentares: o ghichet já está fechado.
Como alguém que quer advertir a cidade duma inundação: mas fala uma outra língua. Não o compreendem.
Como um mendigo que pela quinta vez bate a uma porta onde já recebeu esmola quatro vezes: ele tem fome pela quinta vez.
Como alguém cujo sangue lhe corre duma ferida e espera pelo médico: o sangue continua a correr.

Assim vimos nós e relatamos que em nós se cometem crimes.

Quando se relatou pela primeira vez que os nossos amigos era abatidos pouco a pouco, houve um grito de horror. Então foram abatidos cem. Mas quando foram abatidos mil e a matança não tinha fim, espalhou-se o silêncio.

Quando o crime vem como a chuva cai, então já ninguém grita: alto!

Quando os delitos se amontoam, tornam-se invisíveis.
Quando as dores se tornam insuportáveis, já se não ouvem os gritos.
Também os gritos caem como a chuva de Verão.

1935

(in Poemas; trad. Paulo Quintela)

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Cegas, as palavras, para Casimiro de Brito

Cegas são as palavras embora
seu vagaroso ruído ilumine
a sombra do barro que no corpo
arrefece. Sílabas difusas
do rouco encantamento
onde me confundo como se outro
coração mais fundo não houvesse.

(in Arte de Bem Morrer)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Finalizado o livro «Ou o Poema Contínuo», após muitos meses de leitura(s)

O olhar é um pensamento.
Tudo assalta tudo, e eu sou a imagem de tudo.
O dia roda o dorso e mostra as queimaduras,
a luz cambaleia,
a beleza é ameaçadora.
- Não posso escrever mais alto.
Transmitem-se, interiores, as formas.

(in Ou o Poema Contínuo; "Do Mundo", IV)

sábado, 13 de junho de 2009

Mais alguns versos de Herberto Helder

Folha a folha como se constrói um pássaro
e entre si o ar e a árvore
se iluminam.
O pássaro canta, alguém escuta, as coisas juntam-se
em desequilíbrio
no grande buraco luminoso para cima.
E o canto continua tudo entre árvore e ar
com a luz desarrumada folha a folha.
E cada coisa regressa de si mesma.
No papel onde se levanta o mundo numa baforada desde as unhas
ao braço e à cara e à boca no som apenas
de pedaços de palavras,
a assimetria dos dedos nos vocabulários que faíscam, uma
soletração pouca.
O canto inteiro escrito arterialmente perto,
coluna de sangue e ar,
canto pequeno.

(in Ou o Poema Contínuo; "Do Mundo", IV)

quarta-feira, 10 de junho de 2009

(Lendo «Ou o Poema Contínuo»)


Glenn Gould interpretando a Sarabanda da Partita n.º 4 (BWV 828), de Johann Sebastian Bach

sexta-feira, 5 de junho de 2009

"Rendição", de Daniel Medina

Caem armaduras e espadas
E rendo-me sem condições
Quando imagino o teu regresso
E o nosso velho abraço.

(in Pela Geografia do Prazer)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

"Retrato", de Miguel Torga

Tens nos olhos a luz que me faltava.
Agora posso ver o que não via:
O rosto da alegria
No teu rosto.
Vinho ainda a sonhar
Na fervura do mosto,
Não sabes duvidar
Das ilusões.
És a vida que esperas...
Em ti, as estações
São todas primaveras.

(in Poesia Completa, vol. II)

"Espera", de Miguel Torga


E a expedição partiu.
Partiu, e o coração da mãe parou.
E parado de angústia assim viveu
Enquanto a caravela não voltou.

(in Poesia Completa, vol. II)

quarta-feira, 3 de junho de 2009

"O meu espectador", de Bertold Brecht

Outro dia encontrei o meu espectador.
Na rua poeirenta
Segurava nos punhos uma broca mecânica.
Por um segundo
Levantou os olhos. Armei num repente o meu teatro
Entre as casas. Ele
Olhou cheio de expectativa.
Na taberna
Encontrei-o de novo. Estava junto ao balcão.
Coberto de suor, bebia, na mão
Um pedaço de pão. Armei num repente o meu teatro. Ele
Olhou admirado.
Hoje
Consegui-o de novo. Diante da estação
Vi-o, empurrado por coronhas de espingardas
Para a guerra entre rufos de tambores.
No meio da turba
Armei o meu teatro. Por sobre o ombro
Lançou-me um olhar:
Fez-me um aceno.

(in Poemas; trad. de Paulo Quintela)

Excerto de "Fala a operários-actores dinamarqueses sobre a arte da observação", de Bertold Brecht

(...)
Para observar
É preciso aprender a comparar. Para comparar
É preciso ter já observado. Pela observação
Produz-se um saber, mas é necessário o saber
Para a observação. E:
Observa mal aquele que nada sabe empreender
Com o observado. Com olhar mais agudo
O pomareiro abrange a macieira do que o passeante.
Mas não vê exactamente o homem quem não saiba
Que o homem é o destino do homem.
(...)

(in Poemas; trad. de Paulo Quintela)