quarta-feira, 27 de outubro de 2010

"O macaco declamando", de Bocage

Um mono, vendo-se um dia
Entre brutal multidão,
Dizem que lhe deu na cabeça
Fazer uma pregação.

Creio que seria o tema
Indigno de se tratar,
Mas isto pouco importava,
Porque o ponto era gritar.

Teve mil vivas, mil palmas,
Proferindo à boca cheia
Sentenças de quinze arrobas,
Palavras de légua e meia.

Isto acontece ao Poeta,
Orador e outros que tais:
Néscios o que entendem menos
É o que celebram mais.

(in Fábulas de Bocage)

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

"Vénus aérea", de Nuno Júdice

É um mistério esta claridade
que nasce de um corpo sem passado,
onde a leio numa língua sem idade,
adivinhando o seu futuro neste fado.

Caem pálpebras num cair de pano,
abrem-se dedos num florir de mão,
no seu jardim a primavera não é engano,
no seu rosal o amor está em botão.

Uma boca de pérola envolve-a de segredo,
e dela tiro um brilho de estrela.
Respiro o seu perfume sem ter medo,

acendo nos seus olhos a última vela.
Levo-a como deusa ao templo do mar,
e vejo-a despir-se como se fosse flutuar.

(in Guia de Conceitos Básicos)

domingo, 17 de outubro de 2010

"Acto de ler", de Teresa M. G. Jardim

O acto de ler reabre feridas. Nos livros
em que isso acontece, com frequência,
poderia ao menos haver um aviso na capa;
assim como se faz com as carteiras de tabaco,
embora se saiba que poucos deixam
de fumar
por isso.

(in Jogos Radicais)

domingo, 10 de outubro de 2010

"Crime perfeito", de Teresa M. G. Jardim

O meu gato branco gosta de brincar
com os papéis amachucados
que deito no lixo. Tira-os do caixote
e esconde-os no odor dos ratos, nos vasos
de flores, pelo quintal. Já fiz desaparecer
muitos poemas que não gostava
assim, sem indícios.

(in Jogos Radicais)

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

(Pensar é estar doente dos olhos)

David Fonseca from Ricardo Barros Espírito Santo on Vimeo.


Poema de Alberto Caeiro dito por David Fonseca (ideia: Nuno Artur Silva; produção: "Até ao Fim do Mundo"; imagem: João Filipe Rodrigues; realização: Ricardo Espírito Santo)

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

"Acalanto", de Paulo Henriques Britto

Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projectos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com urna ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, e um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
no aconchego de um outro corpo morno.

(in Macau)

terça-feira, 5 de outubro de 2010

(Centenário da Republica)

(Tem - indiscutivelmente - os seus defeitos, mas reconheço-lhe várias virtudes. Sou republicano).

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

"Lucidez", de António Manuel Couto Viana

Em cada instante, a poesia
Morre em mim.
E a mão certeira que a escrevia
Escreve assim:

Qualquer poesia alheia
Não pode ser comparada
Com esta minha, tão cheia
De nada.

Quem a lê logo conhece
Que é
Aquela que não merece
Nem nota de rodapé.

E, se a estudou, sabe agora
Que perdeu a inspiração.
E cora
De lhe haver dado atenção.

Quem sou de mim foi-se embora:
Pára, de vez, coração!
(Mas dilacera-me a espora:
– Ainda não!)

(in Ainda Não)

"De vulgari eloquentia", de Paulo Henriques Britto

A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.

Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.

Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída – falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porquê", o "sim",

todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.

(in Macau)

domingo, 3 de outubro de 2010

"O lugar do morto", de Tiago Araújo

ao teu lado, no lugar do morto, enquanto
conduzes a conversa a uma frase sem
preparação. chegámos tarde à praia,
como a quase tudo. o vento levanta o
pó do parque de estacionamento e não
saímos do carro. não sei a resposta certa
e por isso represento mal o meu papel secundário.
limito-me a ficar em silêncio, onde
sempre me senti mais confortável.
um lugar sombrio, discreto, abrigado
e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.

(in Livre Arbítrio)