sexta-feira, 28 de novembro de 2008

"Liberdade", de Fernando Pessoa

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doura
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa.

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

(in Poesia 1934-1935 e não datada)

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

"Engodo", de Cees Nooteboom

A poesia não pode tratar de mim,
nem eu da poesia.
Estou só, o poema está só,
o resto é dos vermes.
Estava à beira das ruas onde moram as palavras,
livros, cartas, notícias,
e esperava.
Sempre esperei.

As palavras, em formas claras ou escuras,
transformaram-se em alguém escuro ou mais claro.
Poemas passam por mim
e reconheciam-se como coisa.
Via-o e via-me.

Esta escravidão não tem fim.
Esquadrões de poemas procuram os seus poetas.
Vão errando sem comando pelo grande distrito das palavras
e esperam o engodo da sua forma
feita, perfeita, fechada,
concentrada e

intangível.

(in Uma Migalha na Saia do Universo. Antologia de poesia neerlandesa do século vinte, trad. Fernando Venâncio)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Novos dois excertos de "O Medo (I)", de Al Berto

com fotografias consolo a saudade do rapaz que fui, embora saiba que há muito se apagaram os sorrisos do teu rosto. envelhecemos separados, o eu das fotografias e o eu daquele que neste momento escreve. envelhecemos irremediavelmente, tenho pena, mas é tarde e estou cansado para as alegrias dum reencontro. não acredito na reconciliação, ainda menos no regresso ao sorriso que tenho nas fotografias. não estou aqui, nunca estive nelas. quase nada sei de mim.

* * *

pela janela, entre acácias e piteiras, vejo os barcos surgindo na bruma. o coração aéreo dos pássaros passa rente ao mar, e o mar põe-se a fulgurar, arde, cobre-se de plumas, levanta voo com os pássaros.

(excertos de "O Medo (I)", in O Medo)

sábado, 22 de novembro de 2008

Excerto de "O Medo (I)", de Al Berto

esqueço-me de tudo, por isso escrevo. longe do terror ao sismo inesperado das estrelas, escrevo com a certeza de que tudo o que escrevo se apagará do papel no momento da minha morte.

(excerto de "O Medo (I)", in O Medo)

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

"Soneto", de Eugénio de Andrade

Amor desta tarde que arrefeceu
as mãos e os olhos que te dei;
amor exacto, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;

amor que me destrói e destruiu
a fria arquitectura desta tarde
- só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto que não há razão
para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;
só a ti canto, que não há desastre
de onde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.

(in Os Amantes sem Dinheiro)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

"Fado", de Maria do Rosário Pedreira

Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses. As ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças acoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.

A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu

estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.

(in A Casa e o Cheiro dos Livros)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

(When God created the coffeebreak. Uma homenagem)


Esbjörn Svensson Trio interpretando "When God created the coffeebreak", ao vivo no festival Jazz à Juan Les Pins, França, em Julho de 2003

(Tencionava assistir ao concerto do Esbjörn Svensson Trio na Casa da Música, programado para o dia 14 de Dezembro... Depois de nos deixar um último e fabuloso álbum, "Leucocyte", o desaparecimento deste grande pianista - tinha apenas 44 anos - deixou um vazio na programação da Casa da Música e em todos os que admiravam a música do seu trio...)

domingo, 9 de novembro de 2008

"Com as Gaivotas", de Eugénio de Andrade

à tripla que rumou comigo ao Sul

Contente de me dar como as gaivotas
bebo o outono e a tarde arrefecida.
Perfeito o céu, perfeito o mar, e este amor
por mais que digam é perfeito como a vida.

Tenho tristezas como toda a gente.
E como toda a gente quero alegria.
Mas hoje sou de um céu que tem gaivotas,
leve o diabo esta morte dia a dia.

(in Os Amantes sem Dinheiro)

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Pessoa, fé e obra

Poema após poema, íntimo, escrevia
Aquela grande obra do seu ser
Que nunca em tempo algum alguém leria
E que ele via o universo a ler.

Era mais que poeta: era profeta,
E os seus versos errados e divinos
Toca a rebate o que nele era poeta,
Mas numa torre que não tinha sinos.

Viveu assim, feliz do que escreveu,
Morreu, deixando a obra como sobra
Da alma que fora... Mas, meu Deus, e eu?
Eu que nem tenho a fé nem tenho a obra?

(in Poesia 1934-1935 e não datada)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

"Equilibrista", de Cecília Meireles


Alto, pálido vidente,
caminhante do vazio,
cujo solo suficiente
é um frágil, aéreo fio!

Sem transigência nenhuma,
experimentas teu passo,
com levitações de pluma
e rigores de compasso.

No mundo, jogam à sorte,
detrás de formosos muros,
à espera da tua morte
e dos despojos futuros.

E tu, cintilante louco,
vais, entre a nuvem e o solo,
só com teu ritmo - tão pouco!
Estrela no alto do pólo.

(in Antologia Poética)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

(Em directo)

(Numa sala vazia, o futebol joga-se no televisor que ninguém olha - bendito seja a voz do locutor televisivo, que companhia me faz! Na mesa, aberto, um livro esquecido - entrecortadamente, gastei alguns minutos percorrendo as suas palavras. Hoje, os teus versos, ó poeta do meu gosto, não me dizem nada - estou surdo para a beleza do que escreveste [... o comentador refere que o avançado estava bem posicionado...], mas acuso antes o mundo desta minha surdez... O futebol, em directo transmitido, encheu o estádio, e quem sabe quantos cafés; enquanto eu, nesta quase sala de espera, nem com um verso teu, ó poeta, consigo encher este incomensurável vazio).

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Canção de Cecília Meireles

Inesperadamente,
a noite se ilumina:
que há uma outra claridade
para o que se imagina.

Que sobre-humana face
vem dos caules da ausência
abrir na noite o sonho
da sua própria essência?

Que saudade se lembra
e, sem querer, murmura
seus vestígios antigos
de secreta ventura?

Que lábio se descerra
e - a tão terna distância! -
conversa amor e morte
com palavras de infância?

O tempo se dissolve:
nada mais é preciso,
desde que te aproximas,
porta do Paraíso!

Há noite? Há vida? Há vozes?
Que espanto nos consome,
de repente, mirando-nos?
(Alma, como é teu nome?)

(in Antologia Poética)

domingo, 2 de novembro de 2008

(Fim-de-semana)

(Alguma poesia - que saborosos, aqueles poemas da Cecília Meireles! -, mas sobretudo muita música. Depois de me encantar com o lirismo de um dos - para mim - incontornáveis do jazz, embriago-me agora com a matemática dos livros d'O Cravo Bem Temperado).

sábado, 1 de novembro de 2008

Poemas como companheiros de viagem

Deitei-me sem compor nenhum poema, mas não pude dormir. Recordei o poema sobre Matsushida que Sora me deu ao abandonar a minha choupana. Procurei no meu saco um poema de Hanteki Hara. Ambos foram companheiros daquela noite. Depois li dois haikus de Sampu e Dakusmi.

Matsuo Bashô
(in O Caminho Estreito, trad. Jorge Sousa Braga)