sábado, 28 de janeiro de 2012

Dois poema de José Alexandre Caldas Ribeiro

Já que viste de longe
Descansa no meu corpo
Dou-te abrigo e alimento
Terás em mim quase um monge

* * *

sem perceber o que disse
perguntei-me se o que teria dito
teria importância

«não tem importância», disse ela

(in A água que nos move; Mariposa Azual, 2011)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

"Como se desenha uma casa", de Manuel António Pina

(Para o poeta, com admiração e gratidão pela sua simpatia)


Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.

Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.

Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.

(in Como se desenha uma casa; Assírio & Alvim, 2011)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"História de cão", de Mário Cesariny

(Tropeçando na cultura. Ontem à noite, por motivo que não explano, passei pela Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão, e reparei que lá dentro circulavam várias pessoas; espreitei e constatei que estava prestes a iniciar-se um concerto e um recital de poesia; como tinha uma hora livre, entrei e sentei-me, o que me valeu este poema do Mário Cesariny).

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

então ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

"Puestos estan frente a frente"

(No dia em que acabei de ler a biografia de D. Sebastião, da autoria de Maria Augusta Lima Cruz, publico uma cantiga que muito me apraz).



Puestos estan frente a frente
Los dos valerosos campos,
Uno es del Rey Maluco,
Otro de Sebastiano,
El Lusitano.
Moço, animoso y valiente,
Robusto, determinado,
Aunque de poca experiencia
Y no bien aconsejado,
El Lusitano.

Brama que envistan los moros,
Y el exército contrário
Ya se vá llegando cerca,
Aellos (dize) Santiago,
El Lusitano.
Dispara la artelharia
La nuestra mal disparando,
Llueven balas, llueve muerte,
Saetas y mosquetazos.
El Lusitano.

Que por los lados ya todos
Es vanguardia nuestro campo
Y con sangre de los muertos
Está echo un grande lago.
El Lusitano.
Todo lo anda el buen Rey,
Dando muertes muy gallardo,
La espada tinta de sangre,
Lança rota, sin cavallo.
El Lusitano.

Que el suyo passado el pecho,
Ya no puede dar un passo,
A George Dalbiquerque pide
Le dé su rucio rodado.
El Lusitano.
Daselo de buena gana,
Y el Rey cavalga de un salto,
Mirale el Rey como jaze,
De espaldas casi espirando.
El Lusitano.

Mas le dize que se salve,
Pues todo es roto en pedaços,
Y el Rey se vá a los moros,
A los moros Sebastiano,
El Lusitano.
Busca la muerte en dar muertes,
Sebastiano el Lusitano,
Diziendo aora es la hora,
Que un bel morir, tuta la vita honora.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

"Também da chuva", de Fiama Hasse Pais Brandão

Também da chuva
havemos de falar
e onde cai
diremos que uma queda
diferente
nos faz dizer da chuva
que é uma queda muda

Calada
quando só cai
por nós
quando cai


Também no poema
é nossa
só porque cai
muda
como cai no solo
a chuva

(in Âmago. Antologia; ed. Assírio & Alvim, 2010)

sábado, 7 de janeiro de 2012

Um poema mais de Amadeu Baptista

Eu era um ser delicado, mas a voz que tinha
estava impregnada de resquícios de profunda grosseria,
quem me ouvisse pensava que eu estava a morrer,
as minhas palavras enchias a jactância do teu peito
e amedrontavam o carinho dos simples que me acompanhavam.

As palavras fluíam da minha boca com o estampido do trovão,
eu praguejava contra tudo e todos,
e as minhas mãos brandiam sobre o ar
uma resoluta fortaleza que não me pertencia.

Eu era um ser delicado, a minha voz tonitruante
dava de mim apenas uma imagem enganadora,
as sílabas com que fulminava quem me ouvia
não eram mais que um último reduto de defesa,
um último pedido de socorro. Porque eu era
um ser delicado.

(in A Arte do Regresso; Campo das Letras, 1999)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

"O nome lírico", de Fiama Hasse Pais Brandão

Esta manhã
hoje
é um nome

Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca

Uma palavra
palavra só
a ergue

Com um nome
amanhece
clareia

Não do sol
mas de quem
a nomeia

(in Âmago. Antologia; ed. Assírio & Alvim, 2010)

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

"Falar", de Ferreira Gullar

(Hoje não era suposto publicar neste blogue, mas levou-me o acaso - entenda-se: a necessidade de comprar alguns legumes (!) - a passar por uma livraria e a pegar na obra de um autor que, embora conhecendo, nunca havia explorado. Após as primeiras páginas, o livro de Ferreira Gullar, poeta brasileiro, já me cativara. Tomei nota de um poema, o que abaixo segue, que a seu modo - pelo menos assim o sinto - comunica com o texto de Manuel António Pina anteriormente publicado. Gostaria de poder apresentar mais uns quantos poemas deste autor, mas para já não me será possível).

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

(in Em alguma parte alguma; Ulisseia, 2010)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

"Para que serve, afinal, a poesia", texto de Manuel António Pina

O poemapossivel agradece a Manuel António Pina

Em Poesia, do sul-coreano Lee Chance-dong, uma mulher idosa, ao mesmo tempo que vive os graves problemas em que se envolve o neto adolescente, frequenta aulas de poesia. Deseja, ou antes, precisa imperiosamente de escrever um poema. O filme não ambiciona entender os misteriosos motivos que levam algumas pessoas a precisar de escrever poesia, e muito menos o que seja isso da poesia, algo que, parafraseando o santo, se não nos perguntam sabemos o que é, se nos perguntam já não sabemos.

As tentativas de definição de poesia acabam quase sempre no beco sem saída da etimologia: poesia seria poesis, o fazer (um fazer feito do seu próprio fazer, diz Jean-Luc Nancy). Daí para diante, tudo se torna opaco. E, no entanto, os homens fazem poesia desde o princípio do mundo. E mesmo em tempos, como os nossos, de prosa de negócios, se continua a escrever e ler poesia, e a dizê-la e ouvi-la. Porquê?, para que? - pois alguma razão há-se haver -, se a poesia não serve aparentemente para nada?

Como uma igreja catacúmbica de poucos e persistentes fiéis, no Porto (e decerto noutros lugares também), gente das mais dispersas idades e experiências de vida reúne-se regularmente em bares, galerias de arte, bibliotecas, salões paroquiais, nas próprias juntas de freguesia, para ler e ouvir ler poesia, partilhando quase clandestinamente uma confusa forma de felicidade completamente incompreensível para os pagãos.

Às vezes sou convidado para alguns desses improváveis encontros, de que os jornais não falam e cuja notícia passa de boca em bo¬ca entre amigos, sempre me perguntando o que move aquele peque¬no universo de donas de casa, reformados, estudantes, funcionários, comerciantes (num deles até um ciclista profissional conheci), o que os levará ali a todos, em vez de, como a maioria dos outros, ficarem em casa a ver televisão ou passarem as tardes de fim-de-semana a ver montras nos centros comerciais. Sempre me perguntando e nunca encontrando resposta razoável.

Depois, a poesia tem ainda outra e controversa vertente, a dos que escrevem (e, de novo: porque?, para que?) poesia. A poesia não se compra, a poesia não se vende, ninguém enriquece a escrever ou a editar poesia; a própria palavra «poeta» é hoje, em determinados contextos, uma qualificação quase tão desprestigiante quanto a de «filósofo»...

É certo que muitos poetas parecem convictos de que, escrevendo poesia, «se vão da lei da morte libertando». Só que a camoniana metáfora é apenas isso, metáfora, e ninguém se liberta da lei da morte. Acreditam alguns (humana, demasiadamente humana, delusão) que existirá uma coisa, uma espécie de santidade laica, chamada «posteridade», e labutam incansavelmente por ela, contra o esquecimento inevitável e por um lugar, como dizia um poeta meu amigo hoje já praticamente esquecido, na memória dos «vindouros». Lutar contra a morte é decerto belo se se tem consciência de que é uma batalha perdida e, apesar disso, se persiste; mas quando se acredita que é possível vencer é uma coisa tristíssima, para não dizer (seria cruel de mais) cómica.

Não, a poesia, o que quer que seja a poesia, não protege da morte nem do esquecimento (pois tudo será esquecido, mais ano menos ano, mais século menos século, mais milénio menos milénio; e, visto a suficiente distância, tão-só da Lua ou de Alfa de Centauro, tudo é fútil); a poesia ajuda, mas que sei eu?, a viver e a encontrar nas palavras efémeros instantes de coincidência connosco mesmos e com os nossos medos e desejos. O que, à nossa humana e irrelevante medida, já não será decerto pouco.

Talvez, quem sabe?, a poesia sirva afinal para alguma coisa.

(in Notícias Magazine, edição de 25 de Dezembro de 2011)

domingo, 1 de janeiro de 2012

Abrindo o ano com um poema de Amadeu Baptista (com os votos de um feliz ano)

Procuro um texto impossível,
um outro caminho para a salvação.

Procuro a palavra que nos una definitivamente, o poema
escrito no barro da alucinação, a palavra que cresce da terra
e atinge a noite com pancadas de luminosa alegria.

Procuro o teu rosto, a chave do segredo inviolável, a súbita
haste de uma flor com o teu nome, lírio, lume, lucerna, a pressão
sobre a página que vem reabilitar
a memória de que somos feitos.

Procuro os teus lábios, a cálida gruta
das tuas mãos, a árvore da vida, lágrima
e luz transgredindo o trajecto entre uma ausência e outra,
murmúrio e estremecimento.

Procuro os teus olhos, procuro a profundidade dos teus olhos,
a euforia que vive no fundo dos teus olhos, os íntimos
sinais de selvagem serenidade
com que recebes quem te olha nos olhos, a ternura,
a violenta ternura dos teus olhos.

Procuro o espaço onde prolongar o sonho para além da manhã,
o rio subterrâneo que exorciza o abismo, a ave
que grita entre as ravinas das trevas, o esplendor
da planície, a chuva
áugure.

Um barco ou uma pedra,
procuro.

(in Arte do Regresso; Campo das Letras, 1999)