quinta-feira, 31 de julho de 2008

"À une passante", de C. Baudelaire. Duas propostas de tradução

À une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! — Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!

Charles Baudelaire
(As Flores do Mal)

* * *

A uma passante

A rua ia gritando e eu ensurdecia.
Alta, magra, de tudo, dor tão majestosa,
Passou uma mulher que, com mãos sumptuosas,
Erguia e agitava a orla do vestido;

Nobre e ágil, com pernas iguais a uma estátua.
Crispado com um excêntrico, eu bebia, então,
Nos seus olhos, céu plúmbeo onde nasce o tufão,
A doçura que encanta e o prazer que mata.

Um raio… e depois noite! – Efémera beldade
Cujo olhar me fez renascer tão de súbito,
Só te verei de novo na eternidade?

Noutro lugar, bem longe! é tarde! talvez nunca!
Porque não sabes onde vou, nem eu onde ias,
Tu que eu teria amado, tu que bem sabias!

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

* * *
A uma transeunte

A rua ensurdecedora em meu redor berrava
Alta, esguia, de luto carregado, dor majestosa,
Um mulher passou, com sua mão faustosa
Erguendo, baloiçando o ramo e a bainha

Ágil e nobre, com sua perna de estátua,
Eu bebia, crispado como extravagante,
No seu olhar, céu lívido onde nasce o furacão,
A doçura que fascina e o prazer que mata

Um raio… em seguida, a noite! __ Beleza fugitiva
Cujo olhar me fez repentinamente renascer,
Só voltarei a ver-te na eternidade?

Algures, bem longe daqui! Demasiado tarde! Nunca talvez!
Eu não sei para onde fugiste, tu não sabes para onde vou,
Tu que eu teria amado, tu que sabias que sim!

Tradução de Maria Gabriela Llansol

terça-feira, 29 de julho de 2008

"Mon Père", de Kajetan Kovič

Mon père,
não sei porque te chamo assim,
não falavas francês,
mas isto provavelmente terias
entendido,
talvez eu to diga numa língua
estrangeira
por causa da distância,
conseguiríamos amar-nos
apenas assim:
não muito de perto.
Estávamos sentados
em velhas tabernas,
bebíamos um riesling
ou um šipon
ou, mais frequentemente,
qualquer vinho ácido,
falávamos
das coisas mais comuns.
A vida parava
por trás das portas,
a uma distância segura.
Parecia impetuosa de mais
para lhe dar um nome.
Tínhamos medo,
mon père,
das palavras fortes de mais.
Agora és apenas
uma foto na parede
e um túmulo num bonito cemitério.
Acendo-te uma lamparina,
trago-te flores.
Não a ti,
aos teus ossos.
Conto-te
tantas coisas.
E tu calado.
Apenas a tua lápide.
Com as datas.
De – a.
Meu Deus,
que coisas os filhos não dizem
hoje aos pais.
Aos vivos e aos mortos.
Mon père,
nenhum era
como tu.
Tão só,
tão meu,
tão pai,
perdido neste mundocomo eu.

(in Treze Poetas Eslovenos)

domingo, 27 de julho de 2008

"O monstro", de Alexandre O'Neill

Meneia o monstro a cauda, sedutor.
Seu rosto podia até estar em flor.

Meneia o monstro a cauda como um gato.
Seus olhos suplicam: quer regaço.

O monstro é bom, o monstro realiza
que em família é outra coisa a vida!

Que é da ferocidade anunciada?
Que é do salto? Que é da garra disparada?

O monstro já me pede para ir à escola,
«como os outros meninos». Esta agora!

O monstro vai à escola, apanha boas notas
e volta, alvoroçado, nas suas oito botas.

O monstro aculturado já se deixa montar,
mas ainda não moro naquele seu olhar.

Naquele seu olhar, que é tão meigo, eu já via
algo assim como uma vaga nostalgia.

Que deseja o monstro que não possa ter,
o monstro que eu mostro a quem o quiser ver?

O monstro protesta sua eterna amizade,
diz-se muito feliz, «se é que há felicidade!».

Mas a mim não me enganas. Dou com ele a chorar.
«Que tens tu, ó Castorim, que não queres confessar?».

«A bem dizer, padrinho, eu não tenho nada.
Sei agora que sou uma besta humanizada.

Mas que hei-de fazer com este meu aspecto?
Como hei-de viver com este mau aspecto?

Ó meu bom padrinho, eu só queria voltar
ao pedregal donde me foi tirar!».

Abraçados, chorámos, e eu, complacente,
deixo o monstro ir embora - e para sempre!

Vossa boa atenção não quero fatigar.
Com a moral costumeira vou aqui terminar.

Nunca façam de um monstro a vossa criação,
que tarde ou cedo vai dar complicação.

(in Coração Acordeão)

sexta-feira, 25 de julho de 2008

"Não existes", de Dane Zajc

Não existes na voz do vento, nem na desordem dos montes,
não existes na flor, se os pássaros chamam, não é a ti que chamam,
não existes na nudez da terra, nem no cheiro pesado das ervas,
e se semeias flores para cheirarem a ti, elas só vão cheirar a elas próprias,
se constróis um caminho, o caminho falará dele próprio,
se constróis uma casa e a enches de coisas caras,
vai ver-te um dia como um estranho
e as coisas vão falar-te de si próprias com a sua língua trocista.

É mentira que exista uma fonte para matar a minha sede,
e que exista um rio para te banhares no seu regaço frio.
É mentira que as coisas te vão consolar com uma memória calma
porque um dia todo o teu mundo se vai revoltar.


Um dia as coisas vão mudar de nome.
Então, a pedra será o ódio e o vento será o terror,
a rua será o pó, os pássaros cravarão na tua fronte
os pregos ardentes das suas vozes, o rio será o desespero,
as tuas coisas serão a tua culpa e os teus acusadores.
O mundo será destruído, o mundo não terá nome.

Então, tudo vai ter de ser-te indiferente. Estarás sentado num canto

[abandonado.
Fecharás os olhos para não veres nada. Sobretudo para não veres
a tua perdição na perdição do mundo morto.
Para não pensares que deves
fazer qualquer coisa, não pôr os pés em lado nenhum,
os pés que serão finos, finos como patas de aranha.
Só a tua cabeça será grande. A tua cabeça que florirá,
branca como a magnólia. Longamente procurarás na branca gruta da boca um
[nome para ti,

mas então será melhor que encontres um nome para o fim,
do que para uma continuação.

(in Treze Poetas Eslovenos)

quarta-feira, 23 de julho de 2008

"Save", de Pedro Mexia

Nada fica, a própria memória
é uma mitologia, tenho-me
como testemunha mas nada
garante que um dia não negue
tudo, então haverá este processo
verbal, museu portátil que com
um gesto, dizem, está salvo.
(in Em Memória)

domingo, 20 de julho de 2008

Criação

«Um autor está entregue a si mesmo, corre os seus (e apenas os seus) riscos. O fim da aventura criadora é sempre a derrota irrevogável, secreta. Mas é forçoso criar. Para morrer nisso e disso. Os outros podem acompanhar com atenção a nossa morte. Obrigado por acompanharem a minha morte».
Herberto Helder
(in Photomaton & Vox)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Visa para un Sueño

Como uma vulgar tarde de esplanada se pode transformar num concerto de música cubana - ainda que muito informal. O parzinho dançando ao som dos "Cubanitos" fez-me lembrar uma cena do filme "Querido Diário", do Nanni Moretti, em que, por breves momentos, a realidade de confunde com o sonho...

Excerto do filme "Querido Diário", realizado e protagonizado por Nanni Moretti (Itália, 1993)

"Extinção", de Régis Bonvicino

Antônio Abujamra lê o poema "Extinção", de Régis Bonvicino, no programa Provocações/TV Cultura

O lobo-guará é manso
foge diante de qualquer ameaça
é solitário
avesso ao dia, tímido

detesta as cidades
para fugir do ataque
cada vez mais inevitável
dos cachorros

atravessa estradas
onde quase sempre é atropelado
onívoro, com mandíbulas fracas
come pássaros, ratos, ovos, frutas

às vezes, quando está perdido,
vasculha latas de lixo nas ruas
engasga ao mastigar garrafas
de plástico ou isopores

se corta e ou morre ao morder
lâmpadas fluorescentes
ou engolir fios elétricos
morre ao lamber inseticidas

ou restos de tinta
ou ao engolir remédios vencidos
ou seringas e agulhas
descartáveis

dócil, sem astúcia,
é facilmente capturado e morto
por traficantes de pele
quando então uiva

segunda-feira, 14 de julho de 2008

R. Juarroz: um "poeta-prestigitador"?

Escrever um texto
e deixá-lo abandonado na página.

Não voltar a lê-lo,
não o mostrar a ninguém,
não o mandar a nenhum lado.
Que fique no seu repouso de texto.

E deixar que aí encontre o seu leitor,
como todos os textos o encontram.

Também o que levamos escrito dentro
e nos parece impossível que alguém possa ler.

Roberto Juarroz
(in Poesia Vertical, antologia organizada e traduzida por Arnaldo Saraiva)

domingo, 13 de julho de 2008

"Penélope", de Sophia de Mello Breyner Andresen

Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.

(in Coral)

terça-feira, 8 de julho de 2008

«Para quê falar?», pergunta Roberto Juarroz

Para quê falar?
Mas para quê calar?

Não há ouvido para a nossa palavra,
mas também não há ouvido para o nosso silêncio.
Ambos se alimentam unicamente entre si.

E às vezes permutam as suas zonas,
como se quisessem amparar-se mutuamente.

(in Poesia Vertical, antologia organizada e traduzida por Arnaldo Saraiva)

domingo, 6 de julho de 2008

De novo, Álvaro de Campos

Saí do comboio,
Disse adeus ao companheiro de viagem,
Tínhamos estado dezoito horas juntos.
A conversa agradável,
A fraternidade da viagem,
Tive pena de sair do comboio, de o deixar.
Amigo casual cujo nome nunca soube.
Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...
Toda despedida é uma morte...
Sim, toda despedida é uma morte.
Nós, o comboio a que chamamos a vida
Somos todos casuais uns para os outros,
E temos todos pena quando por fim desembarcamos.

Tudo que é humano me comove, porque sou homem.
Tudo me comove, porque tenho,
Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,
Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.

A criada que saiu com pena
A chorar de saudade
Da casa onde a não tratavam muito bem...

Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.
Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.

E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.

(in Poesia, vol II)

sexta-feira, 4 de julho de 2008

EXIT

Brad Mehldau Trio (Brad Mehldau - piano, Larry Grenadier - contrabaixo, Jorge Rossy - bateria) interpreta "Exit Music (for a film)", dos Radiohead

quinta-feira, 3 de julho de 2008

"Vinheta", de Eucanaã Ferraz




Ame-se o que é, como nós,
efêmero. Todo o universo
podia chamar-se: gérbera.
Tudo, como a flor, pulsa

e arde e apodrece. Sei,
repito ensinamento já sabido
e lições não dizem mais
que margaridas e junquilhos.

Lições, há quem diga,
são inúteis, por mais belas.
Melhor, porém, acrescento,
se azuis, vermelhas, amarelas.

(in Cinemateca)


(O poema possível agradece profundamente a Eucanaã Ferraz por nos ter proporcionado o conhecimento deste e de outros poemas).

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Poema para uma amiga

Para ti, M.

Dos pinhais

Ondulando, os pinhais
quiseram ser o mar.
Murmurando, quiseram ser
o vento. Mas somente
no meu ouvido eram vento,
nos meus olhos, mar.

E hoje, ali na encosta,
pinhais bordejam
o mar, sustêm o vento.

Fiama Hasse Pais Brandão
(in As Fábulas)

terça-feira, 1 de julho de 2008

"Retrato", de Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

(in Antologia Poética)