quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

"Convite", de Egito Gonçalves

Nesta fase em que só o amor me interessa
o amor de quem quer que seja
do que quer que seja
o amor de um pequeno objecto
o amor dos teus olhos
o amor da liberdade

o estar à janela amando o trajecto voado
das pombas na tarde calma

nesta fase em que o amor é a música de rádio
que atravessa os quintais
e a criança que corre para casa
com um pão debaixo do braço

nesta fase em que o amor é não ler os jornais

podes vir podes vir em qualquer caravela
ou numa nuvem ou a pé pelas ruas
- aqui está uma janela acolá voam as pombas -

podes vir e sentar-te a falar com as pálpebras
pôr a mão sob o rosto e encher-te de luz

porque o amor meu amor é este equilíbrio
esta serenidade de coração e árvores

(in 366 Poemas que Falam de Amor; org. de Vasco Graça Moura)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

"Velando", de Augusto Casimiro

Junto dela, velando… E sonho, e afago
Imagens, sonhos, versos comovido…
Vejo-a dormir… O meu olhar é um lago
Em que um lírio alvorece reflectido…

Vejo-a dormir e sonho… Só de vê-la
Meu olhar se perfuma e em minha vista
Há todo um céu de Amor a estremecê-la
E a devoção ansiosa dum Artista…

- Nuvem poisada, alvente, sobre a neve
Das montanhas do céu, – ó sono leve,
Hálito de jasmim, lírio, luar…

Respiração de flor, doçura, prece…
-Ó rouxinóis, calai! Fonte, adormece!...
Senão o meu Amor pode acordar!...

(in 366 Poemas que Falam de Amor; org. de Vasco Graça Moura)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

(Últimos dias)

Fotografia de Nuno Ramos

"Cantiga", de Cabral do Nascimento

Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.

Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.

Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.

À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.

(in 366 Poemas que Falam de Amor; org. de Vasco Graça Moura)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

"Poema podendo servir de posfácio", de Mário Cesariny



ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona da água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume

isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas
devorando almofadas escarlates a caminho
do mar
e que chegam
ao crepúsculo
encostados aos submarinos
isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
- uma mulher para este que está quase a perder
o gosto à vida - tome lá -
dois netos para essa velha aí no fim da fila -
não temos mais -
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois
obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto um rosto solitário como barco em
demanda d eventos calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como
as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta
a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado

ah mas então a pirâmide existe?
ah mas então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com
o mundo?

sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio

e em todo o caso

há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar

(in Manual de Prestidigitação)

domingo, 13 de dezembro de 2009

"As rotações perfeitas", de Ana Luísa Amaral

Se me pedisses de repente e aqui:
«fala das luas e dos dias», eu
nem falaria, diria só que estar contigo
é estar-me:
ofício de tanto tempo,
e natural,
ajustado como pequeno girassol,
ao sul: um paisagem

Nem saberia por onde começar:
se no olhar, se na palavra,
ou se no teu sorriso
que me devastou o equilíbrio do igual

Não sei, meu amor,
como entender este pequeno girassol,
explicar-lhe o movimento certo,
a rotação completa e tão
perfeita,
as folhas muito verdes
de uma tal filigrama delicada
Sobretudo, este seu hino
em direcção a tudo

e já nem sei falá-lo,
porque lhe basta o tempo, e esse
- sem palavras

(in Se fosse um intervalo)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

"Song/Canção", de Alexander Search

Sun to-day and storm to-morrow.
____Never can we know
When is joy or when is sorrow,
____Happiness or woe...
The clock strikes. To-day is gone.
Man, proud man, oh think thereon!

From delight we pass to sadness
____From a smile to tears;
And the boldness of our gladness
____Dies whitin our fears.
The clock strikes. An hour is past.
Think, oh think, how all doth waste!

* * *

Se o sol é hoje, tormenta outro dia.
____Um nunca saber
Quando é tristeza, quando é alegria,
____Se dor ou prazer...
O relógio bate. O sol foi-se embora.
Homem orgulhoso, pensa nisso agora!

Da felicidade se passa à aflição,
____Do rir ao chorar;
E a ousadia da satisfação
____O medo a vai matar.
O relógio bate. Um hora que passa.
Pensa, pensa bem, como tudo se gasta!

(in Poesia de Alexander Search)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

"Amor, é um arder, que se não sente", de Abade de Jazente

Amor, é um arder, que se não sente;
É ferida, que dói, e não tem cura;
É febre, que no peito faz secura;
É mal, que as forças tira de repente.

É fogo, que consome ocultamente;
É dor, que mortifica a Criatura;
É ânsia a mais cruel, e a mais impura;
É frágua, que devora o fogo ardente.

É um triste penar entre lamentos;
É um não acabar sempre penando;
É um andar metido em mil tormento.

É suspiros lançar de quando, em quando;
É quem me causa eternos sentimentos;
É quem me mata, e vida me está dando.

(in 366 Poemas que Falam de Amor; org. de Vasco Graça Moura)

sábado, 5 de dezembro de 2009

"Soneto do cativo", de David Mourão-Ferreira

Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

(in 366 Poemas que Falam de Amor; org. de Vasco Graça Moura)

sábado, 21 de novembro de 2009

"A triste história do zero poeta", de Manuel António Pina

A si mesmo se dedica

Numa certa conta havia
um zero dado à poesia
que tinha um sonho secreto:
fugir para o alfabeto.

Sonhava tornar-se um O
nem que fosse um dia só,
ou ainda menos: só
o tempo de dizer: «Oh!»

(Nos livros e nas selectas
o que mais o comovia
eram os «Ohs!» que os poetas
metiam nas poesias!)

Um «Oh!» lírico & profundo,
um só «Oh!» lhe bastaria
para ele dizer ao mundo
o que na alma lhe ia!

E o que na alma lhe ia!
Sonhos de glórias, esperanças,
ânsias, melancolia,
recordações de criança;

além de um grande vazio
de tipo existencial
e de uma caixa que o tio
lhe pedira para guardar;

e ainda as chaves do carro
e uma máscara de entrudo...
Não tinha bolsos, coitado,
guardava na alma tudo!

A alma! Como queria
gritá-la num «Oh!» sincero!
Mas não passava de um zero
que, oh!, não se pronuncia...

Daí que andasse doente
de grave doença poética
e em estado permanente
de ansiedade alfabética.

E se indignasse & etc.
contra o destino severo
que fizera dele um zero
com uma alma de letra!

Tanta ambição desmedida,
tanto sonho feito pó!
E aquele zero dava a vida
para poder dizer «Oh!»...

(in Pequeno Livro da Desmatemática)

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

"A mosca", de Ogden Nash

Deus criou a mosca
Num momento de inspiração
Mas depois esqueceu-se de nos dizer
Por que razão

(in Poemas com Asas; poema transposto por Jorge Sousa Braga)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

"A minha mãe não me deixa ter um coelho", de Brian Patten

à AJ

A minha mãe não me deixa ter um coelho
Nem que seja um coelho-anão
Não me deixa ter um hamster
Um porco-espinho ou um cão

Não posso ter pombos-correio
Muito menos um rouxinol
Não posso ter um melro
Nem um simples caracol

Não me deixa ter uma cascavel
Ou uma víbora debaixo da cama
Não me deixa ter uma gibóia
Um camelo ou um lama

Não me deixa ter um urso
E não sei por que é que se riu de mim
Quando lhe disse que queria ter uma iguana
Um mangusto ou um pangolim

Não posso ter uma barata
Muito menos um sardão
Não posso ter uma bicha-cadela
Um gusano ou um furão

Não posso ter um gnu
E isto só me acontece a mim
Não posso ter um tatu
Um panda ou um pinguim

Não me deixa ter piranhas
E o que me faz mais pena
É que não me deixe ter um morcego
Um mabeco ou uma hiena

Por isso tenho uma formiga de estimação
No jardim e lá ao fundo na arrecadação
Escondido por detrás da estante
Um secreto elefante

(in Poemas com Asas; poema transposto por Jorge Sousa Braga)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

"Ecos", de Ana Luísa Amaral

Em voz alta, ensaiei o teu nome:
a palavra partiu-se
Nem eco ínfimo neste quarto
quase oco de mobília

Quase um tempo de vida a dormir
a teu lado e o desapego é isto:
um eco ausente, uma ausência de nome
a repetir-se

saber que nunca mais: reduzida
a um canto desta cama larga,
o calor sufocante

Em vez: o meu pé esquerdo
cruzado em lado esquerdo
nesta cama

O teu nome num chão
nem de saudades

(in Se fosse um intervalo)

(Cada vez mais raras)

(Agora, são cada vez mais raras as palavras. Ficam os gestos, em negativo, na memória - e o que é a memória? Ah, os ecos que me chegam principalmente quando o que sobra do mundo se depositou no fundo do dia... Descubro-te, ó poema.)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Excerto de "To a hand"/"Àquela mão", de Alexandre Search

Give me thy hand. With my wounded eyes
I would see what this hand contains.
Ah, what a world of hopes here lies!
What a world of feelings and doubs and pains!
Oh to think that this hand in itself contains
The mystery of mysteries.

(...)

* * *

Dá-me a tua mão. Com meus olhos feridos
Eu quero ver o que esta mão contém:
Ah, um mundo de esperanças está aqui!
De sentimentos, dúvidas e dores!
Oh, pensar que esta mão possa conter
O mistério dos mistérios em si.

(...)

(in Poesia de Alexandre Search, trad. Luísa Freire)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

sábado, 12 de setembro de 2009

"Docemente", de Maria Teresa Horta

Docemente
disponho dos teus braços

dos peixes que navegam
docemente

Docemente
disponho em minha face

a faca dos teus olhos
docemente

Docemente
canso, disponho do cansaço

primeiro do teu afago
docemente

Docemente
afago, a tua boca apago

e vou negando a minha
docemente

(in Poesia Reunida)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

(Mesmo sendo um pouco deslocado...)


"Um problema de arte poética", de Francisco José Viegas

É um destino complicado: ou és poeta ou
preferes o trabalho do romancista.
Ou te entregas ao diálogo, à descrição,
à narração pausada e medida
como um instrumento rigoroso,
ou te deixas tocar pelo silêncio.

(in O Puro e o Impuro)

(Pela tua mão, fui conduzido àquelas quatro prateleiras. De um livro agarrado de forma quase aleatória, seleccionei à pressa estes versos - só para poder afirmar (e com isso sentir um especial contentamento) que, neste dia, o poemapossivel se fez ao teu lado).

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

(Leituras no silencioso limiar da noite)

(...)
Nada é tão veloz talvez como a imobilidade
o máximo de voz é o silêncio
o melhor gesto ainda é o pensamento
e nada há mais eterno que o momento
que a mão que embora fuja fica como uma definição
um sorriso por vezes a mais funda negação do riso
e em muitos gestos a tristeza é como um rio que começa
gestos que intensamente negam a vida que afirmam
e um rosto de inocência e alegria significa malícia ou melancolia
(...)

Ruy Belo
(excerto do poema "Meditação no limiar da noite", in Todos os Poemas, vol. III)

sábado, 5 de setembro de 2009

(Mais longínqua)

(Mais difícil, mais longínqua, a poesia. Ainda assim, parece-me possível. Poucos os livros - bagagem necessária mas pesada, mercadoria ou luxo; o desfolhar das páginas ecoando no excessivo silêncio louco da noite; a consciência das paisagens áridas próximas. Difícil e longínqua. Mas uma voz chegará, de longe, de muito longe, e interromperá - eu sei - a solidão).

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

(O teu dia)

(Sabe que fico com a cabeça leve)

para a AJ

Quando me dá as boas-vindas
De braços bem abertos
Sinto-me como aqueles viajantes que regressam
Das longínquas terras de Punt.

Tudo se muda; o pensamento, os sentidos,
Em perfume rico e estranho.

E quando ela entreabre os lábios para beijar
Fico com a cabeça leve, fico ébrio sem cerveja.

(in Poemas de Amor do Antigo Egipto, tradução de Hélder Moura Pereira)

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Fragmento de poema de Ruy Belo

(...)
Eu amo-te mais do que o mar a areia
e busco-te com mais impaciência
do que a que ele próprio põe quando a procura
e a possui e perde pela maré cheia
(...)

(versos do poema "Ao regressar episodicamente a Espanha, em Agosto de 1534, Garcilaso de La Vega tem conhecimento da morte de Dona Isabel Freire", in Todos os Poemas, vol. III)

"Minha senhora de mim", de Maria Teresa Horta

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito

(in Poesia Reunida)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

"O Canto", de Jorge de Amorim

Como o mundo pesa.

E o pesar
do mundo.

(in Os Oráculos)

"As janelas", de Konstandinos Kavafis

Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas. - Uma janela
quando abrir será uma consolação. -
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.

(in Os Poemas)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

"Brinquedos para homens", de Carlos Drummond de Andrade

Embora eu seja adulto,
não me seduzem os brinquedos eletrônicos
que a moda, irônica, me oferece.
E excogito:
Que brinquedo inventar para o adulto,
privativo dele, sangue e riso dele,
brinquedo desenganado mas eficiente?
Tenho de inventar o meu brinquedo,
mola saltando no meu íntimo,
alegria gerada por mim mesmo,
e fácil, fluida, pluma,
pétala.

Sem o pedir às máquinas e aos deuses,
que cada um invente o seu brinquedo.

(in Amar se aprende amando)

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Dois versos de Carlos Drummond de Andrade

à AJ

O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

(versos do poema "O mundo é grande", in Amar se aprende amando)

sábado, 1 de agosto de 2009

"O primeiro degrau", de Konstandinos Kavafis

A Teócrito queixava-se
um dia o novo poeta Euménès;
«Há dois anos que escrevo
e apenas fiz um idílio.
É a minha única obra completada.
Ai de mim, é alta vejo,
muito alta a escada da Poesia;
e deste primeiro degrau onde estou
não subirei nunca pobre de mim.»
Disse Teócrito: «Estas palavras
são impróprias e blasfémias.
E se estás no primeiro degrau, deves
ser orgulhoso e feliz assim.
Aqui onde chegaste, não é pouco;
quanto fizeste, grande glória.
Este mesmo primeiro degrau
dista muito das pessoas comuns.
Para pisares este primeiro degrau
tens de ser por direito próprio
cidadão da cidade das ideias.
E é muito difícil nessa cidade
e raro que te naturalizem.
Na sua ágora encontras Legisladores
que não pode burlar nenhum aventureiro.
Aqui onde chegaste, não é pouco,
quanto fizeste, grande glória.»

(in Os Poemas)

sábado, 25 de julho de 2009

"Perda", de Maria Teresa Horta

Não há dor maior
do que aquela de perder-te
nem na cor há mais cor
que nos teus olhos

Nem na cidade
saudade que se invente
que seja mais saudade
que aquela de não ver-te

(in Poesia Reunida)

quarta-feira, 22 de julho de 2009

"Nós", de Maria Teresa Horta

Se puderes meu amor
dizer
não o escondas

pois esconder é esquecer
na saudade a maneira

que dizer meu amor
do amor
não prolonga

ou demora a distância
que em nós
se encadeia

(in Poesia Reunida)

quarta-feira, 15 de julho de 2009

"Invento", de Maria Teresa Horta

Porque será meu amor
que sempre
na tua ausência tudo se suspende

e o vício de te ver é tanto
que em todo o sítio meu amor
te invento

(in Poesia Reunida)

terça-feira, 14 de julho de 2009

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Quadra de Nuno Rocha Morais

Deveria ser dado que morrêssemos
Com um amor ainda vivo em nós,
Como deveria ser dado a um pássaro
Morrer naturalmente em pleno voo.

(in Últimos Poemas)

quinta-feira, 9 de julho de 2009

(Música, outra vez)


Bar Kokhba no Festival de Marciac (2007), interpretando Geverah (Marc Ribot - guitarra; Mark Feldman - violino; Erik Friedlander - violoncelo; Greg Cohen - contrabaixo; Joey Baron - bateria; Cyro Baptista - percussões; John Zorn - compositor e maestro)

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Três versos de Ruy Belo

(...)
O duche de água fria lava em mim a poesia
e sabe-me a sabão se sabe a alguma coisa
coisa tão suja como o é a poesia
(...)

(versos de "Meditação Anciã", in Todos os Poemas, vol. III)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Poema de Nuno Rocha Morais

Ao teu lado, mudo.
Suponho que pousei a mão
No teu ombro, não sei,
Ausentes ambos,
Tu do ombro, eu da mão.
Lá fora, não muito longe
Do vidro, a manhã passa
E é calma, tristeza, fim.

(in Últimos Poemas)

sábado, 4 de julho de 2009

(Bis)


Esbjörn Svensson Trio interpretando "When God Created The Coffee Break", ao vivo no Leverkuzener Jazzstage (2005)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

"Como aves, cuja passagem", de Nuno Júdice

Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que então correspondia
a um acto heróico, nada significa
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos.
Só se eu próprio
me tornar uma sombra, e também eu passar
a uma outra vida. Durante algum tempo
alguém falará de mim dizendo «conheci-o»,
ou «há tanto tempo, falei com ele». Mas
em breve outros se tornarão sombras,
e depois outros, até que o meu gesto
se confunda com esses, e todos por fim
se dissipem na obscuridade do tempo
passado.

(in Poesia Reunida, 1967-2000)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Excerto do poema "Louvor da Dúvida", de Bertold Brecht

(...)
Rodeado de berros de comando, examinado
Na sua capacidade por médicos barbudos, inspeccionado
Por entes radiosos com distintivos áureos, admoestado
Por solenes sacerdotes que lhe dão nas orelhas com um livro escrito [pelo próprio Deus,
Ensinado
Por mestres-escolas impacientes, o pobre fica a ouvir
Que o mundo é o melhor dos mundos e que o buraco
No tecto do seu quarto foi planeado pelo próprio Deus.
Na verdade, é-lhe muito difícil
Duvidar deste mundo.
(...)

(in Poemas; trad. Paulo Quintela)

(Ondas)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Um último poema de «Arte de Bem Morrer», de Casimiro de Brito

Levantei-me de madrugada.
Reguei a buganvília.
O mundo já não é o que era.

(in Arte de Bem Morrer)

"Ícaro", de Miguel Torga

O sol dos sonhos derreteu-lhe as asas
E caiu lá do céu onde voava
Ao rés-do-chão da vida.
A um mar sem ondas onde navegava
A paz rasteira nunca desmentida...

Mas ainda dorida
No seio sedativo da planura,
A alma já lhe pede, impenitente,
A graça urgente
De uma nova aventura.

(in Poesia Completa, vol. II)

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Um poema de Casimiro de Brito, que versa o morrer de amor e desamor

Esta manhã não lavei os olhos -
pensei em ti.

*

Se o teu ouvido se fechou à minha boca
poderei escrever ainda poemas de amor?
A arte de amar não me serve para nada.

*

Um fogo em luz transformado.
Subitamente, a sombra.

*

Há dias em que morro de amor.
Nos outros, de tão desamado,
morro um pouco mais.

(in Arte de Bem Morrer)

terça-feira, 23 de junho de 2009

(Em escuta)


Masada Sextet, no Festival de Marciac (2008), interpretando "Haamiah"
(John Zorn - saxofone; Dave Douglas -trompete; Uri Caine - piano; Greg Cohen - contrabaixo; Joey Baron - bateria; Cyro Baptista - percussão)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Hoje, apenas um verso


No teu abraço não tenho pressas

(verso do poema "Tela", in Pela Geografia do Prazer)

domingo, 21 de junho de 2009

"Quem é o teu inimigo?", de Bertold Brecht

Ao faminto, que te tirou
O último pão, olha-lo como inimigo.
Mas ao ladrão que nunca passou fome
Não lhe saltas às goelas.

(in Poemas; trad. Paulo Quintela)

quinta-feira, 18 de junho de 2009

"Quando o crime vem como a chuva cai", de Bertold Brecht

Como alguém que chega com uma carta importante ao ghichet depois das horas regulamentares: o ghichet já está fechado.
Como alguém que quer advertir a cidade duma inundação: mas fala uma outra língua. Não o compreendem.
Como um mendigo que pela quinta vez bate a uma porta onde já recebeu esmola quatro vezes: ele tem fome pela quinta vez.
Como alguém cujo sangue lhe corre duma ferida e espera pelo médico: o sangue continua a correr.

Assim vimos nós e relatamos que em nós se cometem crimes.

Quando se relatou pela primeira vez que os nossos amigos era abatidos pouco a pouco, houve um grito de horror. Então foram abatidos cem. Mas quando foram abatidos mil e a matança não tinha fim, espalhou-se o silêncio.

Quando o crime vem como a chuva cai, então já ninguém grita: alto!

Quando os delitos se amontoam, tornam-se invisíveis.
Quando as dores se tornam insuportáveis, já se não ouvem os gritos.
Também os gritos caem como a chuva de Verão.

1935

(in Poemas; trad. Paulo Quintela)

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Cegas, as palavras, para Casimiro de Brito

Cegas são as palavras embora
seu vagaroso ruído ilumine
a sombra do barro que no corpo
arrefece. Sílabas difusas
do rouco encantamento
onde me confundo como se outro
coração mais fundo não houvesse.

(in Arte de Bem Morrer)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Finalizado o livro «Ou o Poema Contínuo», após muitos meses de leitura(s)

O olhar é um pensamento.
Tudo assalta tudo, e eu sou a imagem de tudo.
O dia roda o dorso e mostra as queimaduras,
a luz cambaleia,
a beleza é ameaçadora.
- Não posso escrever mais alto.
Transmitem-se, interiores, as formas.

(in Ou o Poema Contínuo; "Do Mundo", IV)

sábado, 13 de junho de 2009

Mais alguns versos de Herberto Helder

Folha a folha como se constrói um pássaro
e entre si o ar e a árvore
se iluminam.
O pássaro canta, alguém escuta, as coisas juntam-se
em desequilíbrio
no grande buraco luminoso para cima.
E o canto continua tudo entre árvore e ar
com a luz desarrumada folha a folha.
E cada coisa regressa de si mesma.
No papel onde se levanta o mundo numa baforada desde as unhas
ao braço e à cara e à boca no som apenas
de pedaços de palavras,
a assimetria dos dedos nos vocabulários que faíscam, uma
soletração pouca.
O canto inteiro escrito arterialmente perto,
coluna de sangue e ar,
canto pequeno.

(in Ou o Poema Contínuo; "Do Mundo", IV)

quarta-feira, 10 de junho de 2009

(Lendo «Ou o Poema Contínuo»)


Glenn Gould interpretando a Sarabanda da Partita n.º 4 (BWV 828), de Johann Sebastian Bach

sexta-feira, 5 de junho de 2009

"Rendição", de Daniel Medina

Caem armaduras e espadas
E rendo-me sem condições
Quando imagino o teu regresso
E o nosso velho abraço.

(in Pela Geografia do Prazer)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

"Retrato", de Miguel Torga

Tens nos olhos a luz que me faltava.
Agora posso ver o que não via:
O rosto da alegria
No teu rosto.
Vinho ainda a sonhar
Na fervura do mosto,
Não sabes duvidar
Das ilusões.
És a vida que esperas...
Em ti, as estações
São todas primaveras.

(in Poesia Completa, vol. II)

"Espera", de Miguel Torga


E a expedição partiu.
Partiu, e o coração da mãe parou.
E parado de angústia assim viveu
Enquanto a caravela não voltou.

(in Poesia Completa, vol. II)

quarta-feira, 3 de junho de 2009

"O meu espectador", de Bertold Brecht

Outro dia encontrei o meu espectador.
Na rua poeirenta
Segurava nos punhos uma broca mecânica.
Por um segundo
Levantou os olhos. Armei num repente o meu teatro
Entre as casas. Ele
Olhou cheio de expectativa.
Na taberna
Encontrei-o de novo. Estava junto ao balcão.
Coberto de suor, bebia, na mão
Um pedaço de pão. Armei num repente o meu teatro. Ele
Olhou admirado.
Hoje
Consegui-o de novo. Diante da estação
Vi-o, empurrado por coronhas de espingardas
Para a guerra entre rufos de tambores.
No meio da turba
Armei o meu teatro. Por sobre o ombro
Lançou-me um olhar:
Fez-me um aceno.

(in Poemas; trad. de Paulo Quintela)

Excerto de "Fala a operários-actores dinamarqueses sobre a arte da observação", de Bertold Brecht

(...)
Para observar
É preciso aprender a comparar. Para comparar
É preciso ter já observado. Pela observação
Produz-se um saber, mas é necessário o saber
Para a observação. E:
Observa mal aquele que nada sabe empreender
Com o observado. Com olhar mais agudo
O pomareiro abrange a macieira do que o passeante.
Mas não vê exactamente o homem quem não saiba
Que o homem é o destino do homem.
(...)

(in Poemas; trad. de Paulo Quintela)

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Poema de Herberto Helder

Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.

(in Ou o Poema Contínuo; "Última Ciência", 4)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Versos de Casimiro de Brito

Contaminado pelo barro da vida
que já se afasta, corrompida,
basta-me este canto rouco. Anunciador
da madrugada? Mas onde estou eu, sem chão
nem jangada? Comido pela boca nocturna
só me restam umas sílabas escuras.
Com elas não sei o que fazer. A arte
da queda? Deixa acontecer.

(in Arte de Bem Morrer)

terça-feira, 26 de maio de 2009

"Uma emergência de outono", de João Luís Barreto Guimarães

As cores da maçã assada aberta
pelo fim do verão antecipam no palato
uma emergência de outono.
Convida a ficar em casa
esta maçã que feri e salpiquei pelo torso com
cézannes de canela.
Sob a epiderme tisnada (cor
amarelo-pecado) é
perene o seu sabor. Vê só
como jazem nuas
suas vestes pelo prato
(qual roupa de rapariga desbragada
pelo chão).

(in A Parte pelo Todo)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Casimiro de Brito sentado numa rocha

Sentado nesta rocha e quase
tão paciente como ela
pergunto-me se os nossos pensamentos
serão diferentes. É certo que tenho ouvidos
e ela não, olfacto
e ela não - mas que sei eu das suas
sensações? Que direi do pó incansável
que em mim canta e balança e se afasta
para outro lugar? Saberá ela
que sou um homem quase acabado? Eu,
o que sei dela? Há um sol
que se levanta e vagas e brisas salgadas
que se transformam em espuma -
há uma sombra num país distante
que a todos espera - é o que temos
em comum. Inclino-me sob o vento para defender
a minha natureza. Ela também. A rocha
saberá o calendário?

(in Arte de Bem Morrer)

terça-feira, 19 de maio de 2009

(A folha arrancada de um livro)

(A folha arrancada de um livro - de um manual (universitário?) de biologia? Sublinhados a esferográfica verde, no corpo do texto, e anotações (minúsculas) feitas com um lápis muito afiado, pelas margens exteriores e por todos os espaços (mesmo os mais pequenos) em branco. Detenho-me numa palavra, como se a reconhecesse ou fosse capaz de decifrar a difícil caligrafia; começa com um "C" bem desenhado - será "Camões"?).

(Uma moedinha, amigo?)

(Uma moedinha, amigo? Desculpa, não tenho trocados (só ar, ar, e mais ar no fundo dos bolsos). Talvez dois versos? «Aprendo a conhecer o meu tamanho / Pela maneira como perco ou ganho.» Aceite, são do Miguel Torga. Deixe estar, amigo, fica-me a dever; não consigo comprar cigarros com isso).

(Não há um poema?)

(Não há um poema? Nem ao menos um verso? Honestamente, não sei o que resta no fundo dos bolsos - talvez só uns trocados de ar... Ah!, como és lírico se pensas que te podes alimentar só de ar! Agasalha-te assim e amanhã não respirarás! O poema, ou somente o verso, mesmo sem ser visto, dançava, dançava...).

quinta-feira, 14 de maio de 2009

segunda-feira, 11 de maio de 2009

"O Rei de Ítaca", de Sophia de Mello Breyner Andresen

A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado

(in O Nome das Coisas)

segunda-feira, 4 de maio de 2009

"Furto", de Miguel Torga


Saboreio este dia,
Fruto roubado no pomar do tempo.
Sabe-me a novidade,
Deixa-me os lábios doces.
Tem a polpa de sol, e dentro dele
Calmas sementes doutro sol futuro.
Cheira a terra lavrada e a maresia.
E tão livre e maduro,
Que quando o apanhei já ele caía.

(in Poesia Completa, vol. II)

domingo, 3 de maio de 2009

"Regressarei", de Sophia de Mello Breyner Andresen

Eu regressarei ao poema como à pátria à casa
Como à antiga infância que perdi por descuido
Para buscar obstinada a substância de tudo
E gritar de paixão sob mil luzes acesas

(in O Nome das Coisas)

quinta-feira, 30 de abril de 2009

"Liberdade", de Sophia de Mello Breyner Andresen

O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos

(in O Nome das Coisas)

segunda-feira, 27 de abril de 2009

E agora um excerto de "A Margem da Alegria", de Ruy Belo...

(...)
Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado
Quando te vejo e embora exista o vento
nenhuma folha nas múltiplas árvores se move
ver-te é logo todas as coisas começarem é
tudo ser desde sempre anterior a tudo
Ver-te é sem tu me veres eu sentir-me visto
sentir no meu andar alguma segurança mínima
caminhar pelo ar a meio metro da terra
e tudo flutuar e ser ainda mais aéreo do que o ar
ver-te é nem mesmo pensar que deixarei de ver-te
ver-te é sentir pousar mais que um olhar
uma mão muito calma sobre a minha vida
ver o teu rosto é ter toda a certeza de que existo
que sempre existirei que não há mais ninguém
ver o teu rosto é mesmo mais do que nascer
empreender viagens começadas nesse rosto
donde podem sair inúmeros navios
ver o teu rosto é como tudo começar
corrida a minudenciosa prega do silêncio
silêncio alto como um cerro inesperado como um curro
aéreo como um cirro denso como um cerro
prosaico às vezes como a mecânica de um carro
(...)

(excerto de A Margem da Alegria, in Todos os Poemas, vol. II)

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Excerto suculento de Al Berto

(...)
a queda da laranja provocará o poema?
a laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco?
e um louco, saberá o que é uma laranja?
e se a laranja cair? e o poema? e o poema com uma laranja a cair?
e o poema em forma de laranja?
e se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? a ficar louco?
e a palavra laranja existirá sem a laranja?
e a laranja voará sem a palavra laranja?
(...)

(versos de "Prefácio para um livro de poemas", in O Medo)

sábado, 18 de abril de 2009

Dois versos de um poema de Ruy Belo

"Pergunto e não quero que ninguém me responda
perguntar por perguntar pode ser a mais alta forma de saber"

(versos do poema "o Beneficiado Faustino das Neves", in Todos os Poemas, vol. III)

terça-feira, 14 de abril de 2009

"Harmonia", de Miguel Torga

Feliz canto das aves,
Sem possível
Compreensão;
Feliz rumo dos astros,
Sem possível
Desvio;
Feliz fúria do vento,
Sem possível
Arrependimento.

E feliz o poeta
Que ninguém lê.
Que sozinho contempla
O nascimento e a morte
Dos seus versos.
Pai acabado que no próprio corpo
Gera os filhos
E lhes dá ternura
Do berço à sepultura.

(in Poesia Completa, vol. II)

(I think images are worth repeating)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

"Pergunta", de Miguel Torga

(Estes versos, lidos pela manhã, fizeram evocar ao autor deste blogue uma certa fotografia recentemente vista...)

Peixe que voas, coração furtivo,
Onde vais como seta despedida?
Que ilusão te levanta, ou que motivo
Te pede as asas duma outra vida?

(in Poesia Completa, vol. II)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

quarta-feira, 8 de abril de 2009

"Dá-me um poema", de Malcolm Lowry

Dá-me um poema
Para despedaçar o coração dos homens
Puro como lâminas
Como o som de um relógio
Sobre o pântano.
Diz-me o significado, espectro,
E diz-me a hora
Em que me perco,
E em que quarto serei encontrado outra vez.
Dá-me o poder da minha mão
E que as minhas palavras sejam sãs
E fortes como o voo.
Conduz o meu aparo,
Ajuda-me a escrever,
Mostra-me as portas
Onde estão as ordens;
E a prisão
Que a minha alma contempla,
Onde a minha coragem
Ruge entre as grades.

(in As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar; trad. José Agostinho Baptista)

domingo, 5 de abril de 2009

"There is no poetry when you live there", de Malcolm Lowry

There is no poetry when you live there.
Those stones are yours, those noises are your mind,
The forging thunderous trams and streets that bind
You to the dreamed-of bar where sits despair
Are trams and streets: poetry is otherwhere.
The cinema fronts and shops once left behind
And mourned, are mourned no more. Strangely unkind
Seem all new landmarks of the now and here.

But move you toward New Zealand or the Pole,
Those stones will blossom and the noises sing,
And trams will wheedle to the sleeping child
That never rests, whose ship will always roll,
That never can come home, but yet must bring
Strange trophies back to Ilium, and wild!

(in As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar)

terça-feira, 31 de março de 2009

"Noite de Primavera", de Zhang Kejiu

No pátio do baloiço uma lua pálida raras estrelas
uma nuvem melancólica, a tristeza da chuva no rosto dum hibisco
a andorinha aflita, atei à sua pata um fio de seda vermelha
uma sombra desesperada no espelho de bronze, o leque redondo [abandonado
do fogão com boca de animal evola-se o fumo da madeira de sândalo
na baía de esmeralda restos de flores
uma a uma, anotei estas coisas no florilégio dos meus pensamentos [amorosos

(in Cinquenta "Xiaoling"; trad. Albano Martins)

sexta-feira, 27 de março de 2009

(Dia Mundial do Teatro - um fragmento de Shakespeare)

Julieta:
Dei-te o meu voto antes que mo pedisses.
Mas ai, quem me dera que o pudesse voltar a dar.

Romeu:
Eras capaz de retirá-lo? Com que propósito, amor?

Julieta:
Para ser generosa, e poder dar-to mais uma vez.

(in Romeu e Julieta)

"Duas lições", de João Melo

I

Todos os materiais servem ao poeta:
o som de um tambor,
a angústia de uma mulher nua,
a lembrança de uma utopia.

A vida deposita, diariamente,
no altar profano da poesia,
a sua dádiva generosa:
estrelas e detritos.

E tudo a poesia sacrifica.

II

Para amar um poema,
é preciso ter coração e
sangue nas veias.

E que o poema seja uma carícia
ou um soco na boca do estômago.

(in Auto-Retrato)

quarta-feira, 25 de março de 2009

"Para vivenciar nadas", de Ondjaki

borboleta é um ser irrequieto.
para vestes usa pólen.
tem um cheiro colorido
e babas de amizade.
descola por ventos
e facilmente aterriza em sonhos.
borboleta tem correspondência directa
com a palavra alma.
para existir usa liberdades.
desconhece o som da tristeza
embora saiba afogá-la.
usa com afinidades
o palco da natureza.
nega maquilhagens isentas
de materiais cósmicos. como digo:
pó-de-lua, lápis solar
castanho-raiz, cinzento-nuvem.
borboleta dispõe de intimidades
com arcos íris
a ponto de cócegas mútuas.
para beijar amigos e vidas ela usa olhos.
borboleta é um ser
de misteriosos nadas.

(in Há Prendisajens com o Xão)

terça-feira, 24 de março de 2009

"Para pisar um chão com estrelas", de Ondjaki

(De novo, um poema com estrelas. Pura coincidência. O anterior, de Pessoa, repousava no meu caderno há pelo menos dois meses - reli-o, quase por acaso, e reencontrei-me com a sua beleza; o que agora se publica, resulta de uma leitura feita minutos antes de partir do lugar - deste xão - onde me encontro... mas não para pisar um chão com estrelas).

imitando-me ao morcego
intimidei o dia a ser mais vertical.
assim o céu ganhou pés
a terra experimentou alturas.
apressas, pedi:
uma noite se antecipasse.
transfigurando conceitos
o palco do mundo vincava-se
de novas encenações.
estrelas chegaram.
lua teve dúvidas para posicionar-se.
encaminhando
andei sobre o céu sob meus pés.
assim revelei-me:
nunca é impossível
pisar um chão de estrelas.
...
logo-logo:
um grilo atirou-se a sorrisos.

(in Há Prendisajens com o Xão)

Uns quantos versos de Pessoa

São velhas as estrelas, e elas são
Grandes. Velho e pequeno é o coração,
E contém mais do que as estrelas todas,
Sendo, sem espaço, mais que a imensidão.

(in Poesia 1934-1935 e não datada)

sábado, 21 de março de 2009

Comemorar o Dia Mundial da Poesia... com um poema de Eucanaã Ferraz


O poeta insiste:
brune, lava, escoda.

Mas já não sonha
o perfeito.

Verruma
porque o canto é isso mesmo.

Isso:
toda a palavra é defeito.

(in Desassombro)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Outra quadra de Umar-i Khayyām

Quando deitarmos o último suspiro,
Colocarão tijolos na campa das nossas cinzas.
Das nossas cinzas moldarão tijolos
Para cobrir as campas daqueles que virão depois.

(in Rubā'Iyat)

terça-feira, 17 de março de 2009

"O poema", de José Tolentino Mendonça

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.

(in A Noite Abre Meus Olhos)

segunda-feira, 16 de março de 2009

Quadra do poeta persa Umar-i Khayyām

Uma taça do vinho novo é sempre desejada,
Os sons da flauta suaves ouviria sem cansaço.
Quando o oleiro transformar as minhas cinzas numa jarra
Que esteja sempre cheia com o vinho!

(in Rubā'Iyat)

Ainda um poema do «Livro das Quedas», de Casimiro de Brito

Se o mundo não tivesse palavras
a palavra do mar, com toda a sua paixão,
bastava. Não lhe falta
nada: nem o enigma nem
a obsessão. Entregue ao seu ofício
de grande hospitaleiro
o mar é um animal que se refaz
em cada momento.
O amor também. Um mar
de poucas palavras.

(in Livro das Quedas)

quinta-feira, 12 de março de 2009

Os dois primeiros versos de um poema de Casimiro de Brito

Se dizem que parti, não é verdade;
se dizem que se morre, acabo de chegar.
(...)

(in Livro das Quedas)

"A estrada branca", de José Tolentino Mendonça

Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

(in A Noite Abre Meus Olhos)

terça-feira, 10 de março de 2009

segunda-feira, 9 de março de 2009

Mais versos de Casimiro de Brito

(Hoje que faz sol, deliciou-me este poema de chuva... Reparo agora que o poema publicado anteriormente, há poucas horas apenas, também fala de chuva...).

A chuva pede que me cale
ou convida-me a cantar? Ainda
não entendi, vou escutar
com mais atenção, vou encostar
ao búzio delicado da chuva
o ouvido poluído
do coração.

(in Livro das Quedas)

Versos de Gérard de Cortanze

E se a chuva existisse
apenas no olhar
que tu me diriges?
A água, assim, viria
da alma. Mas o olhar
provém da chuva. Porque
sem a chuva - sem a consciência
dela, através dos olhos -,
o olhar não existe.
Assim, o olhar detém
um pouco de chuva,
na sua água: as
lágrimas - talvez?
Ou o mar. Ou a terra
quando a chuva a
devolve húmida ao olhar.

(in O Movimento das Coisas, trad. Isabel Aguiar Barcelos)

domingo, 8 de março de 2009

terça-feira, 3 de março de 2009

"Velharias", de Nuno Júdice

Às vezes, eu subia as escadas para o sótão; e
parava sempre nas caixas que iam ocupando
os degraus, para ver o que tinham lá dentro.
Por entre rendas de bilros, velhas canetas,
discos de 75 rotações, caixas de costura,
havia também postais e cartas, assinadas
por gente de que nunca ouvira falar, com
mensagens banais, de parabéns por esque-
cidos aniversários, ou anunciando idas
para férias num tempo de termas e
casinos. Do meio dessas cartas, por vezes,
também caíam nós de cabelos ou
palavras mais ternas. Os diminutivos
substituíam os nomes; e formas de trata-
mento que deviam ter ficado guardadas
nos ouvidos de quem se ama ouviam-se,
de súbito, como se o tempo não tivesse
passado, sepultando num fundo de memória
quem assim escreveu. Então, procurava ler
nas entrelinhas; e tocava a caligrafia perfeita
com que a carta começava, sentindo a
aspereza da tinta, até chegar a meio da
página onde a letra se fazia trémula, e o desejo
saltava de dentro do papel. Quando fechava
a caixa, com os seus segredos arrumados,
já não subia o resto das escadas: que sombras
me esperavam naquele sótão? Que mãos
gastas pela solidão me iriam puxar para
cima, de onde quem entrou não volta a descer?

(in Geometria Variável)

segunda-feira, 2 de março de 2009

(O pó do poema)

(Transcrevo um poema: despendo, a meio do dia, cerca de vinte minutos nessa tarefa inútil. Cada verso, ou palavra, ou sílaba, ou letra, pouco mais significam que pequenas partículas de tempo - intangível pó que fixo em páginas levemente amarelas com a minha letra. O buzinar dos automóveis é o ponto final do que transcrevo; pergunto-me: em que tarefas, seguramente mais úteis, despendem os apressados condutores o pó das suas vidas?).

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

"Pedro, lembrando Inês", de Nuno Júdice

Em que pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.

(in Pedro, lembrando Inês)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

(Guerra ou paz)

Fotografia de Sofia L.

(A Guerra Civil, de acordo com certos olhos, não aparece retratada apenas no Guernica, mas também nos jardins do Museu do Prado).

"Zoologia: o rouxinol", de Nuno Júdice

Um rouxinol ocupa o centro da tua cabeça,
como se estivesse numa gaiola. Podia sair
pelos teus olhos, e voar de roda dos teus
cabelos, num movimento de carrossel. Podias
apanhá-lo com as mãos, e tocar as suas
asas, como se fossem um teclado, fazendo
ouvir a música do céu. Mas o rouxinol
não sai. Prefere que eu espreite para o
fundo dos teus olhos e o descubra, no
centro da tua cabeça, onde o guardas,
para que só eu possa ouvir o seu canto,
e imaginar as voltas que ele daria pelos
teus cabelos, se saísse de dentro de ti, e
me fizesse ouvir a música do céu quando
o prendesses com as mãos, para me dares
esse pássaro que não te quer deixar.

(in A Matéria do Poema)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

(Muitas figuras)

Fotografia da obra Many Times (1999), de Juan Muñoz, da exposição "Juan Muñoz. Um retrospectiva", patente no Museu de Arte Contemporânea da Fundação Serralves

"Revelação", de José Tolentino Mendonça

Meu o ofício incerto das palavras
a evocação do tempo
o recurso ao fogo

Meu o provisório olhar
sobre este rio
o fascínio consentido das margens
sitiando a distância

Meus são os dedos que em tumulto
modelam capitéis
de sombra e arestas

Mas oculto na brisa
és Tu quem percorre o poema
despertando as aves
e dando nome aos peixes

(in A Noite Abre Meus Olhos)

domingo, 22 de fevereiro de 2009

"Para escrever o poema", de Nuno Júdice

O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.

(in A Matéria do Poema)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Novo poema do "Livro das Quedas", de Casimiro de Brito

Sentado na sua casa branca
onde não acontece nada
um homem pergunta ao sol:
Se a morte não existe,
se tudo é canto e glória,
se no sal repousa a vertigem,
onde se acumula o pó?

(in Livro das Quedas)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Versos de Casimiro de Brito

O ardor que transmito
ao limão da palavra
inebria-me, vou
continuar, vou devolver às palavras
algum som algum sal embora saiba
que esta vertigem
é precária. Posso defender-me
(de quê?) dizendo
que só o precário merece
um pouco de exaltação. Talvez ande
por aqui
algum sangue, algum indício
de respiração.

(in Livro das Quedas)

domingo, 8 de fevereiro de 2009

(Dias sem poesia)


Adagietto (4º andamento), da Sinfonia n.º 5, de Gustav Mahler, interpretado pela Orquestra Filarmónica de Israel, sob a condução de Zubin Mehta (Teatro Municipal de Santiago de Chile, 2001)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

("desmoronar-se a sílica do coração")

à minha avó Ção (1919-2009)
à minha avó'Rora (1921-2009)

Um homem
vai no seu corpo
e subitamente
cai. Ouço
desmoronar-se
a sílica do coração.
E ouço também
a terra e o ar
acolherem os ossos
do filho pródigo.
Em si este acontecimento
não é nada original
mas dói. O vento
do Outono
morde-me os ossos
e dói.

Casimiro de Brito
(in Livro das Quedas)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

(Rainy day)

(Tantos minutos passados ao volante, conduzindo à chuva, e nem um poema impermeável para me abrigar...).

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

"Malaguenha", de Federico Garcia Lorca

A morte
entra e sai
da taberna.

Passam cavalos negros
e gente sinistra
pelos fundos caminhos
da guitarra.

E há um cheiro a sal
e a sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.

A morte
entre e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.

(in Poemas de Garcia Lorca; trad. Eugénio de Andrade)

domingo, 25 de janeiro de 2009

"Explicações científicas", de Gonçalo M. Tavares

Explicam cientificamente as decisões de um planeta,
porém não há laboratório capaz de estudar
a razão por que o homem se levanta
da cadeira quinze minutos depois
de ter bebido o seu café.
Descuidou-se a biblioteca: esqueceu acontecimentos mínimos.
Só há livros sobre reis e invasões, enormes discursos,
nem uma única página sobre as palavras
bom-dia, da peixeira ao jovem comprador.
Ninguém conhece um facto por dentro, ou uma acção,
como se conhece uma coisa.
Quem vem do nascimento vai para a morte,
são como dois lugares fixos,
cuja distância entre eles depende do acaso, quase sempre,
umas vezes da doença exterior,
raramente da decisão do homem triste
que se suicida.

(in 1)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

"Supernova", de Jorge Sousa Braga

Uma estrela quando morre
morre tão devagar
que não se lembra sequer
de que chegou a brilhar

Mas nem todas as estrelas
morrem dessa maneira
Há quem antes de morrer
brilhe pela vida inteira

(in Pó de Estrelas)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

(Dias sem poesia - um ano após o início)


Primeiro andamento (Adagio sostenuto) da "Sonata ao Luar", de Ludwig van Beethoven, interpretado por Wilhelm Kempff

domingo, 18 de janeiro de 2009

"O vento", de Jorge Sousa Braga

Por mais que tente, o vento
não consegue adormecer
se não tiver nada para ler.
Seja uma folha de tília,
de bambu ou buganvília.

É por isso que o vento
arrasta as folhas consigo,
até encontrar um abrigo,
onde possa adormecer.
- arrastou até a folha
onde eu estava a escrever!

(in Herbário)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

"Raízes", de Jorge Sousa Braga

Quem me dera ter raízes,
que me prendessem ao chão.
Que não me deixassem dar
um passo que fosse em vão.

Que me deixassem crescer
silencioso e erecto,
como um pinheiro de riga,
uma faia ou um abeto.

Quem me dera ter raízes,
raízes em vez de pés.
Como o lódão, o aloendro,
o ácer e o aloés.

Sentir a copa vergar,
quando passasse um tufão.
E ficar bem agarrado,
pelas raízes, ao chão.

(in Herbário)

"Pietà", de Miguel Torga

Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.
(in Poesia Completa, vol. I)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Um excerto mais de "O Medo (II)", de Al Berto

passei a manhã e parte da tarde a observar-me no espelho. procurava um indício de morte sobre o rosto.
que minuciosa imperceptível tarefa teria ela iniciado durante a noite? nada visível por agora. nada se vislumbra na cor da pele, no movimento das pálpebras ou no húmido dos lábios.
doem-me as mãos. um vómito sobe. sinto-me demasiado fraco para suportar o meu próprio peso. se ao menos a morte me prevenisse que chegaria. bastava que me mostrasse um vertiginoso buraco na água, um diáfano sorriso de pássaros ou uma pedra flutuando.
seria fácil, arrumaria com tempo os papéis escrevinhados, redigiria com pompa e gozo as últimas vontades, deitaria fora tudo o que possuo e sentar-me-ia à espera. mentalmente escreveria o derradeiro poema: vem com tua mortalha de água, ó treva...

(excerto de "O Medo (II)", in O Medo)

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

"Visita", de Miguel Torga

Fui ver o mar.
Homem de pólo a pólo, vou
De vez em quando olhá-lo, enraizar
Em água este Marão que sou.

Da penedia triste
Pus-me o olhar aquele fundo
Dentro do qual existe
O coração do mundo.

E vi, horas a fio,
A sua angústia ser
Uma espécie de rio
Que não sabe correr.

(in Poesia Completa, vol. I)

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

"Descrição de uma cidade", de Gonçalo M. Tavares

Não há lado esquerdo na metafísica,
O que não é uma limitação.
A produção industrial de problemas
Solta para o ar nuvens espessas
Que interferem no aeródromo.
Aviões cobertos de graffiti não conseguem levantar voo
Porque, entre os vários desenhos, os miúdos
Desenharam pedras de granito. A Ideia de granito
Pesa mais que a existência concreta de um
Balão, o mundo das ideias é estado transitório entre
O Nada e a montanha. Entretanto, a
Natação tornou-se importante para a cidade
Depois do dilúvio ocorrido há três mil anos. O governo
Oferece inscrições gratuitas e ainda casais de animais
Bruscos, mas mansos. Os homens andam felizes, e também
As mulheres, porque todos aprendem a nadar antes dos
Sessenta. Hoje, neste século, morre-se afogado mais tarde.
O mundo é perfeito de todos os lados,
Menos do lado onde estamos: como um sólido geométrico
Belo que cai em cheio na cabeça desprevenida.
O mundo é fantástico visto de cima, de helicóptero. A linguagem
Sobe e interfere em camadas específicas da atmosfera,
As palavras que usas não são inertes. O inglês, por exemplo,
É Língua que entra excessivamente nas nuvens. O inglês
Para a Astronomia é deselegante, e prejudica ligeiramente
As aves baixas.
No outro lado do mundo, entretanto, alguém, de grandes dimensões,
Enfia o aeródromo num saco de plástico. As pulsações
Da alma medem-se pelos pressentimentos, não por
Aparelhos medicinais. E não se ilumina a escuridão,
Ilumina-se algo que já não é escuridão; precisamente porque
A escuridão é escura, escuríssima segundo dizem.

(in 1)

(Café, não...)

(... carioca de limão...)

domingo, 11 de janeiro de 2009

"Bucólica", de Miguel Torga

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

(in Poesia Completa, vol. I)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

(Escassas leituras)

(Pouca poesia tem sido lida nos últimos dias pelo autor destas linhas. Há nesta afirmação, e na consciência do que ela significa, um certo remorso: os livros continuam, dia após dia, na mesma posição; os marcadores, pequenos pedaços de papel quase sempre rabiscados, na mesma página. O leitor anda ausente, ainda que novos livros apareçam sobre os velhos - mas aí ficam dias, sem que ninguém se interesse pelos seus segredos...)

domingo, 4 de janeiro de 2009

"As árvores e os livros", de Jorge Sousa Braga

As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.

E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.

As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».

É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.

(in Herbário)

(Os primeiros versos que se publicam neste novo ano provêm de um livro de poesia para crianças. São os versos que hoje me apetecem).