quarta-feira, 13 de agosto de 2014

[Abre as pernas, dizia-lhe. Morre. E ela morria], de José Rui Teixeira

Abre as pernas, dizia-lhe. Morre. E ela morria
e os filhos mastigavam a luz como frutos secos.
Morria como os lírios redimidos sobre a mesa
da sala no domingo de páscoa, a substância audível
de um ventre em combustão sobre a humidade
da terra, o risco assimétrico do fogo, a queda como
vocação para cair ou a proximidade dos corpos,
ou a devolução inesperada das mãos. Morria.
Não explicava as árvores, porque o milagre
era uma imersão na densidade inteligível do seu útero.

(in O fogo e outros utensílios da luz; ed. Quasi, 2005)

terça-feira, 5 de agosto de 2014

[As árvores são lugares imensos, como pálios], de José Rui Teixeira

As árvores são lugares imensos, como pálios
dobrados sobre o tempo. Creio que existem
como mutação da realidade, como o movimento
imperceptível de Deus sobre as águas. Existem
expostas à erosão, na curvatura quebrada
da superfície, no sacrário de uma natureza ferida.

Existem como uma porção infinitesimal da alegria
do mundo. Depois morrem sem que ninguém perceba
e a sua sombra perdura à morte, à decomposição lenta
das suas estruturas silenciosas como abismos,
indecifráveis como mistérios antigos, extensíveis
como os braços de Deus em combustão.

(in O fogo e outros utensílios da luz; ed. Quasi, 2005)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"Talho", de Jorge Luis Borges

Mais vil do que um bordel,
o talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.

(in Obra Poética - Vol. 1; ed. Quetzal, 2012; trad. Fernando Pinto do Amaral)