quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Em espiral

(Por muito que me pretenda anular nas linhas deste blogue, reconheço que tal é utópico – como utópico é buscar objectividade na emotividade. Cada poema publicado, cada autor escolhido, entre os muitos possíveis, revela a subjectividade de um gosto pessoal – o meu, com todas as suas limitações –, a quase aleatoriedade do acesso a uns livros e a outros não, e do conhecimento de uns autores e de outros não.
Partindo desta assumpção, hoje decidi publicar um dos poemas que me marcou a juventude – quando ainda não descobrira o prazer de ler poesia. O autor é um velho conhecido, mas não me parece excessivo revisitá-lo – e, mesmo que o seja, hoje é o poema que me apetece
).

* * *

Ali não havia electricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler –
A Bíblia, em português, porque (coisa curiosa!) eram protestantes.
E reli a Primeira Epístola aos Coríntios.
Em torno de mim o sossego excessivo das noites de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A Primeira Epístola aos Coríntios…
Reli-a à luz duma vela subitamente antiquíssima,
E um grande mar de emoção ouviu-se dentro de mim…

Sou nada…
Sou uma ficção…
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
«Se eu não tivesse a caridade»...
E a soberana voz manda, do alto dos séculos,
A grande mensagem em que a alma é livre…
«Se eu não tivesse a caridade»…
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!…

Álvaro de Campos
(in Poesia, vol. II, ed. Teresa Rita Lopes)

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

"Canção Excêntrica", de Cecília Meireles

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
projecto-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
É já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
– saudosa do que não faço,
– do que faço, arrependida.

(in Antologia Poética)

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

(Parênteses)

Talvez tivesse razão o poeta que ouvi há uns tempos: a poesia é um "ofício magoado" - é um nada com líricas aspirações a nobreza. Porquê ler poesia? Para quê? (E porque não?).
A verdade é que (e esta é a constatação a que chego a cada passo) não sei falar de poesia, por muito que a leia (e que com ela cresça – ou julgue crescer) e me esforce por transmiti-la (com dúbio sucesso) aos que me rodeiam... Se, como defendem alguns, a poesia é intransmissível, porquê insistir em disseminá-la?
É certo que manter este inofensivo blogue não é muito custoso – as leituras acontecem e aconteceriam independentemente dele (além disso, ainda retiro o secreto prazer de todos os gestos inglórios); mas fará sentido? Fará sentido a exteriorização desta fraqueza?

sábado, 23 de agosto de 2008

"Madrigal Melancólico", de Manuel Bandeira

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito subtil,
Tão ágil, tão luminoso,
– Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi,
Não é a irmã que já perdi,
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
(in Antologia)

terça-feira, 19 de agosto de 2008

"O último poema", de Manuel Bandeira (o último poema possível?)

Assim eu quereria o meu último poema

Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

(in Antologia)

sábado, 16 de agosto de 2008

Versos de Ramos Rosa

Quando dizemos estrela esperamos
que a palavra brilhe como uma estrela
mas não como se a palavra a nomeasse
porque só o nome dela brilha
e na sua própria ausência ele é uma estrela

(in A Intacta Ferida)

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

"Conserve este bilhete até ao final da viagem", de Rui Pires Cabral

Devo dizer que sempre preferi
os versos feridos pela prosa
da vida, os versos turvos
que tornam mais transparentes
os negros palcos do tempo, a dor
de sermos filhos das estações
e de andarmos por aí, hora após
hora, entre tudo o que declina
e piora. Em suma, os versos
que gritam: Temos as noites
contadas. E também
os que replicam:
Valha-nos isso.

(in Capitais da Solidão)

Summer music

Primeiro encore (o tema "Chameleon" do clássico álbum «Head Hunters», de 1973) do concerto de Herbie Hancock (piano e teclados) no Palácio de Cristal (Porto), ocorrido no dia 3 de Agosto deste ano. Hancock apresentou-se acompanhado por Dave Holland (contrabaixo), Vinnie Colaiuta (bateria), Chris Potter (saxofone), Lionel Loueke (guitarra)

domingo, 10 de agosto de 2008

Sobre o poeta

«No chamado consenso geral (ou público) uma das aparências que o alienado ainda reveste é a de poeta. (...)
Pode acontecer que o poeta se desacerte ao abotoar-se, diga «perdão!» quando é pisado por vocês, faça uma declaração de amor a um marco do correio, não saiba ganhar a (vossa) vida... Pode acontecer. Mas acautelai-vos: o poeta é um distraído terrivelmente atento. A sua distracção é pura economia. Apostado em caçar o essencial, o poeta resvala de olhos vagos pelo que já viu e reviu. Ele sabe que até morrer nunca mais terá tempo».

Alexandre O'Neill
(excerto de prefácio publicado in Coração Acordeão)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Ruy Belo, poeta desaparecido há 30 anos

27 Fev. 1933 - 08 Ago. 1978
Um dos meus poetas favoritos. Morreu há trinta anos.
* * *
(...)
Falareis de mim não posso impedir que faleis de mim
mas já nada disso me pesa como o simples facto de ter de ser vosso amigo
Estou só e só para sempre e só desde sempre
mas antes por direito de opção. Agora não
Deixaram-me aqui doutor em tantas e grandes tristezas portuguesas
e durmo o sono das coisas convivo com minerais preparo a minha juventude [definitiva
Era como eu esperava mas não posso dizer-vos nada
pois tendes ainda o problema e a cara da pessoa viva
(excerto de poema inédito dado a conhecer em 2003,
publicado in Todos os Poemas, vol. III)

De «A Intacta Ferida»

Não tenho lágrimas
estou mais baixo
junto à cal

Vejo o solo extinto
Não oiço ninguém
e não regresso

Adormecer talvez
junto a uma estaca
com uma pequena pedra
sobre as pálpebras

António Ramos Rosa
(in A Intacta Ferida)

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

"Sopa", de Carl Sandburg

Vi um homem famoso comer sopa.
Vi que levava à boca o gorduroso caldo
com uma colher.
Todos os dias o seu nome aparecia nos jornais
em grandes parangonas
e milhares de pessoas era dele que falavam.
Mas quando o vi,
estava sentado, com o queixo enfiado no prato,
e levava a sopa à boca
com uma colher.

Tradução de Alexandre O'Neill
(in Maria Antónia Oliveira, Alexandre O'Neill. Uma biografia literária)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Mais versos de valter hugo mãe

Toutinegra-de-cabeça-preta
um pássaro pergunta-me se
existe o céu, para saber se
lhe responderei ou se
deve cair


(in Estou Escondido na Cor Amarga do Fim da Tarde)

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Versos de valter hugo mãe

sobre os olhos que saio
a minha árvore despida plantada
na nuvem presa chora. sopro-lhe
o vento que possuo, mas
não se mexe. quebro as imagens
em lágrimas. suplico. abano os
braços e tento pôr-me de
pé. a minha árvore é
pequena, inventei-a
à pressa. cabe-me toda dentro
da cabeça. agora ouço menos surdo
o abanar das folhas, vejo menos
cego o que o meu grito
espanta

(in Estou Escondido na Cor Amarga do Fim de Tarde)

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

(Dias sem poesia)


Antonio López Palacios interpretando a "Gnossienne" n.º 3, de Erik Satie