quarta-feira, 21 de agosto de 2013

"urgente", de Mário Cesariny

As bombas matam porque sofrem duma espécie de doença incurável
que as faz ganhar saúde quando as largam no ar
uma vez expostas à lei da gravidade
e por ela arrastadas para o mundo humano
as bombas precisam de explodir tal como uma criança precisa de urinar
até fazerem um lugar onde fiquem
que se não mova    que seja
como um direito a isso
ao pé do deus adulto que lhes deu comida

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

[a morte está tão atenta à tua força contra ela], de Herberto Helder

a morte está tão atenta à tua força contra ela,
enquanto ávido e acerbo cantas debaixo da água enviada,
¿acaso contes adormecê-la com a música turva?
quem se expõe à água ganha os poderes da nomeação mais simples,
apenas um duche, dizes,
há muito já alguém pediu o mesmo,
que ela recuasse,
ilhargas, ombros, dedos, o movimento dos cabelos,
o corpo solitário,
um canto último fundido ao início do canto,
mas a morte sabe que não há razão nunca,
e quem pede sabe que não pode,
teias de água fecham a tua grande nudez,
e dizes: um duche, apenas um inebriamento,
mas a morte não tem paciência para apurar um dialecto,
nada, só o arroubo táctil onde apoias a dor, desequilíbrio e medo,
enquanto falas do que nem ela entende,
agarrado à dura
dura
coluna de água

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

sábado, 17 de agosto de 2013

"Poema", de Mário Cesariny

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto        tão perto        tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

"Estação", de Mário Cesariny

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

[bic cristal preta doendo nas falangetas], de Herberto Helder

bic cristal preta doendo nas falangetas,
papel sobre a mesa,
a luz que vibra por cima, por baixo
a cadeira eléctrica que vibra,
e é isto:
electrocutado, luz sacudida no cabelo,
a beleza do corpo no centro da beleza do mundo:
pontos de ouro nas frutas,
frutas na luz escarpada,
clarões florais atrás de paredões de água,
água guardada no meio das fornalhas
- isto que, sentado eu na minha cadeira eléctrica,
entra a corrente por mim adentro e abala-me,
e com perícia artífice deixa no papel
o nexo estilístico entre
o terso, vívido, caótico e doce:
e o escrito, o carbonífero, o extinto,
o corpo

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

[do mundo que malmolha ou desolha não me defendo], de Herberto Helder

do mundo que malmolha ou desolha não me defendo,
nem de mim mesmo, à força
de morrer de mim na minha própria língua,
porque eu, o mundo e a língua
somos um só
desentendimento

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

[no mundo há poucos fenómenos do fogo], de Herberto Helder

no mundo há poucos fenómenos do fogo,
ar há pouco,
mas quem não queria criar uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
o tempo doendo, a mente doendo, a mão doendo,
o modo esplendor do verbo,
dentro, fundo, lento, essa língua
errada, soprada, atenta,
mas agora já nada me embebeda,
já não sinto nos dedos a pulsação da caneta,
a idade tornou-me louco,
sou múltiplo,
os grandes lençóis de ar sacudidos pelo fogo,
noutro tempo eu cobria-me com todo o ar desdobrado,
havia tanto fogo movido pelo ar dentro,
agora não tenho nada defronte,
não sinto o ritmo,
estou separado, inexpugnável, incógnito, pouco,
ninguém me toca,
não toco

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

[retira-se alguém um pouco atrás na noite], de Herberto Helder

retira-se alguém um pouco atrás na noite
para fazer uma escola da leveza,
sentar-se sobre si mesmo devorando uma laranja,
pronta,
colhida ao caos, que ela sim ilumina quem a usa,
e é isto: a laranja faz rodar os dedos, torna
leve, pelos dedos,
aquele que a levanta, e tão exacto gosto na língua,
tão transbordante,
dói no fino do frio açúcar,
e a laranja levanta tudo: luz e dedos, e a pessoa
com ferida na boca, o gosto
magoado até à pronúncia das expressões mais simples do idioma,
golpe a golpe,
como em estrangeiro brutal,
ou inexpugnável,
que faz ele? talha trémula, oh Deus! lavrada a pau virgem e folha de
                                                                                          [ouro,
mete-lhe os polegares pelos umbigos, devora-a, celebra, embebeda-
                                                                                             [se,
que escola de laranja terrestre não se pode mais que esta leveza


(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

"Pastelaria", de Mário Cesariny

Isaque Ferreira declama "Pastelaria", no programa televisivo Um Poema por Semana (RTP, 2011)

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao
        precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

(in Nobilíssima Visão; ed. Assírio & Alvim)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

[sou eu que te abro pela boca], de Herberto Helder

sou eu que te abro pela boca,
boca com boca,
metido em ti o sôpro até raiar-te a cara,
até que o meu soluço obscuro te cruze toda,
amo-te como se aprendesse desde não sei que morte,
ainda que doa o mundo,
a alegria

(in A faca não corta o fogo; ed. Assírio & Alvim, 2008)