sábado, 29 de agosto de 2015

"Sed non satiata", de Charles Baudelaire

Estranha deusa, morena como são as noites,
Com perfumes de almíscar e tabaco havano,
Talvez obra de um mago, um Fausto da savana,
Bruxa de ébano ou filha de vis meias-noites,

Prefiro, em vez de todos os vinhos e do ópio,
O elixir dessa boca onde se pavoneia
O amor; quando pra ti partem os meus desejos
Teus olhos são cisterna onde os tédios afogo.

Por esses olhos negros respira a tua alma,
Ó demônio sem dó! a tua chama acalma!
Que eu não posso abraçar-te nove vezes, qual Estige,

Nem consigo, ai de mim! Megera libertina,
Pra ti quebrar a força e acabar contigo
No teu leito infernal tornar-me Prosérpina!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

"O inimigo", de Charles Baudelaire

Foi medonha tormenta a minha mocidade,
Aqui e além cortada por brilhantes sóis;
A chuva e os trovões fizeram tais estragos
Que poucos frutos rubros no jardim me sobram.

E eis-me já em pleno Outono das ideias,
Quando é preciso usar os ancinhos e a pá
Pra arranjar outra vez a terra, após a cheia,
Onde a água escavou, quais tumbas, grandes valas.

E quem sabe se as flores que eu sonho, renovadas,
Poderão encontrar nessa areia lavada
O místico alimento que lhes dê vigor?

- Ó dor! Ó minha dor! O Tempo engole a vida,
E o que nos rói o peito, esse obscuro Inimigo,
Com o sangue que perdemos cresce e ganha força!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

"Shadows cease low. Now the bright prentice Sun / As sombras cessam. Já o sol, empregado", de Fernando Pessoa

Shadows cease low. Now the bright prentice Sun
Takes down the shutters of the shop of Life,
And, counter wiped, the day's toil is begun
Of selling means no Hope, worker Joy's wife.

But what is this to me that, beggared deep,
No more than up and down the street repeat
My dream of what I'd buy, were not buying step
For the chilled walk of my loss-palsied feet?

I see the buyers enter and come out,
Stayed at the corner of occasions lost;
I hear the talk, the laugh, the casual bout
Of buying, and I half forget the post

Of mendicant exclusion, mine eyes being
Taken up more with looking that with seeing.

* * *

As sombras cessam. Já o sol, empregado,
Puxa as persianas da loja do Viver
E, limpo o balcão, começa o trabalho
De vendas à Esperança, esposa do Prazer.

Mas o que me resta, profundo mendigo,
Senão repetir, na rua a caminhar,
Meu sonho de compras, não fosse excessivo
P'ra meus pés gelados, tolhido o andar.

Vejo os compradores entrar e sair,
Parado à esquina da perdida ocasião;
Ouço a conversa, o riso, a casual crise
De compras e quase esqueço a minha condição

De mendiga exclusão, ficando a olhar,
Menos preso ao ver do que ao contemplar.

(in Poemas Ingleses. Vol. II; trad. Luísa Freire, ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

"When slattern Time, worn out with toil of wearing / Quando o Tempo esquecido, gasto a lutar", de Fernando Pessoa

When slattern Time, worn out with toil of wearing,
With loose‑tied pack shall trudge upon my years,
And I shall feel that forced occasion nearing
That despair's self (that must live to be) fears,

I, being beggared of all wealth of hope -
So prodigal have I to wishes been -
Shall with known uselessness for the coin grope
To pay that the hour’s ending be serene.

I shall not enter the great silent cave
With curious ardour, or ease out of sun,
But all that with me I shall then still have
Will be a coward rage that all is done.

No hope the cave's a passage shall control
Fear of the immediate night of the shown hole.

* * *

Quando o Tempo esquecido, gasto a lutar,
Com seu fardo solto a custo vier,
E eu sentir a fatal hora chegar
E o temor (pois sem vida não é) de ser,

Eu, do bem da esp'rança sendo mendigo -
Embora tão pródigo no desejar -
Buscarei a moeda, inútil já digo,
Com que um fim sereno possa pagar.

Na funda cova silente entrarei
Sem estar curioso ou do sol cansado,
Mas tudo o que então comigo terei
É raiva cobarde por tudo acabado.

O crer que a cova é passagem não detém
O medo da noite que do fundo vem.

(in Poemas Ingleses. Vol. II; trad. Luísa Freire, ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Primeira estrofe do poema "Sorrow no more for the faded rose", de Fernando Pessoa

Sorrow no more for the faded rose,
Nor of the yellow lily despair.
These, as we see them, are but their shows.
They are elsewhere.

(...)

* * *

Não lamentes mais a rosa em decadência,
Nem do lírio amarelo a desolação.
Eles, como os vemos, são só aparência.
Noutro lugar estão.

(...)

(in Poemas Ingleses. Vol. II; trad. Luísa Freire, ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

"Ao leitor", de Charles Baudelaire

O erro, a mesquinhez, o pecado, a tolice,
Excitam-nos o corpo e ocupam-nos o espírito,
Mas sempre alimentamos remorsos felizes
Como os mendigos fazem aos seus parasitas.

Com pecados teimosos e remissões frouxas,
As nossa confissões largamente cobramos,
E ao caminho da lama, contentes, voltamos,
Crendo com choros vis lavar as nódoas todas.

Na almofada do mal está Satã Trimegisto
Que embala devagar a nossa alma encantada
E até o metal rico da nossa vontade
Vai sendo evaporado por esse alquimista.

Os cordéis que nos puxam, prende-os o Diabo!
Vemos que nos atraem as coisas nojentas;
Sem horror, através das trevas fedorentas,
Ao Inferno descemos, cada dia um passo.

Como um devasso pobre que devora e beija
O seio encarquilhado da velha rameira,
Colhemos, ao passar, clandestino prazer
Que como uma laranja moída esprememos.

Como um milhão de vermes, nas nossas cabeças
Enche-se até fartar um povo de Demónios,
E quando respiramos desce-nos a Morte
Aos pulmões, como um rio de surdos lamentos.

Se o estupro ou o veneno, o incêndio, o punhal
Ainda não enfeitaram com desenhos lindos
A banal talagarça dos nossos destinos,
É porque não mostrou arrojo a nossa alma.

Mas no meio de chacais, panteras ou cadelas,
Escorpiões ou macacos, serpentes, abutres,
Monstros que grasnam, rosnam, rastejam e uivam,
Por entre os nossos vícios, galeria abjecta,

Existe um bem mais feio, mais cruel, imundo!
Que, mesmo recusando gestos ou clamores,
Facilmente faria da terra um destroço
E num simples bocejo engoliria o mundo;

É o Tédio! - Com o olhar chorando sem razão,
Vai fumando o cachimbo e sonha cadafalsos.
Conheces bem, leitor, tal monstro delicado,
- Hipócrita leitor, - meu igual, - meu irmão!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Excerto de poema "Now are no Janus' temple-doors thrown wide", de Fernando Pessoa

(...)
With cuirass and with pike we laid aside
All that made battle worth the death in it.
Our science‑made war‑gestures now deride
The great eternal things that war doth fit
With helm and armour.
With mortal pomp yet pomp. We are on death's side.
(...)

* * *

(...)
Com couraça e lança foi tudo arredado
O que digna tornava a morte pela luta.
O bélico gesto, em ciência transformado,
Desdenha do ideal eterno que se ajusta
À batalha com elmo e armadura.
Com pompa mortal, mas pompa. A morte ao lado.
(...)

(in Poemas Ingleses. Vol. II; trad. Luísa Freire, ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)