domingo, 30 de outubro de 2011

Poema de João Pedro Messender

Pousa as armas do Outono
e caminha ao longo da margem.
Um golpe de névoa
rouba-lhe
a ordem do dia. Por que não
esbanjar a sua ruína
partilhar as árvores descarnadas
sacudir a harmonia do mundo?

(in A Cidade Incurável; ed. Caminho, 1999)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

"Soneto", de Violante do Céu

(Vozes de uma dama desvanecida de dentro de uma sepultura, que fala a outra dama, que presumida entrou em uma igreja com os cuidados de ser vista e louvada de todos, e se assentou a um túmulo, que tinha este epitáfio, que leu curiosamente)

Ó tu, que com enganos divertida
Vives do que hás-de ser tão descuidada,
Aprende aqui lições de escarmentada,
Ostentarás acções de prevenida.

Considera, que em terra convertida
Jaz aqui a beleza mais louvada,
E que tudo o da vida é pó, é nada,
E que menos que nada a tua vida.

Considera, que a morte rigorosa
Não respeita beleza, nem juízo,
E que sendo tão certa é duvidosa:

Admite desse túmulo o aviso,
E vive do teu fim mais cuidadosa,
Pois sabes, que o teu fim é tão preciso.

(in Antologia da poesia do período barroco; ed. Moraes Editora, 1982)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

"T. de telefone", de Pedro Tiago

entende esta verdade,
coberta de musgo e metáforas: a literatura
já não é nada. dizem-me que não posso
escrever isto (isto), porque estou inserido na
contemporaneidade que, de tão aberta, literaria-
mente, me fecha todas as mãos e todos os braços.
e não posso usar metáforas nem lirismo nem posso
repetir os modernistas, porque o modernismo
já passou. e dizem-me que se quero ser lido
tenho de fazer assim, mas nunca entendo muito
bem o que seja isso. vou continuando a ver
velhos a dar milho e pão aos pombos, nos
parques e jardins públicos, ao sol e à chuva,
e isso chega-me. a literatura pode já não ser
nada, mas também, verdade seja dita,
não a pretendo nisto.

(in O Comportamento das Paisagens; ed. Artefacto, 2011)

sábado, 15 de outubro de 2011

"Uma conversa de almofada", de Pedro Tiago

revoltavas-te, as tuas costas dobradas,
inclinadas para a frente, os seios tocando
nas pernas enquanto procuravas uma meia
debaixo da cama e franzias as sobrancelhas
numa cara de criança que acorda tarde:
«não percebo porque é que a poesia
tem de ser tão absurda». e eu respondia-te
que tem de ser assim, porque o mundo
já está cheio de coisas concretas e práticas
que não fazem sentido nenhum.

(in O Comportamento das Paisagens; ed. Artefacto, 2011)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

(Entre parênteses)

(Entre parênteses podemos questionar tudo. E a verdade é que tenho questionado o sentido deste poemapossivel, tão sem mérito e, há que admiti-lo, tão estático. Nestes três anos de existência tem vindo a crescer, crescer, mas sem qualquer evolução aparente - a não ser, talvez, o acréscimo de novos autores. É legítimo, mais uma vez, pensar em dar-lhe um ponto final. Este fac-simile de leituras feitas, assumido desde o início como inglório (e porventura inútil) esforço, não serve ninguém. Os livros de poesia, já o escrevemos, se acabam por ser um luxo, são suficientes por si; e ainda que os leia, e, à minha maneira os tenha vindo a publicitar, dou por mim a pensar se os ditos livros não serão "suficientes por si" mesmo sem leitores. No outro dia li um curto texto sobre a inutilidade de escrever poemas; o autor [suponho que a si mesmo] dizia que era essa inutilidade que os tornava importantes, e auto-justificado estava o ato de os escrever. Bem, não sendo um teórico da poética, apenas me interrogo: a importância da poesia não acusará, por sua vez, a inutilidade deste blogue?)

domingo, 9 de outubro de 2011

"Previsão menos musical de um futuro", de Pedro Tiago

será possível um dia que os bancos de jardim
sejam levados para longe e nas praias muitos
corpos antigos desagúem, vindos de rios e de barcos
naufragados. será o tempo inteiro, completo, e na
televisão dir-se-á que os bancos faliram e que por
todo o mundo se sentem os efeitos do crash. será possível
que seja essa a altura em que a poesia fale
do crash e da falência dos bancos, no cinema passarão
fitas paradas de vida selvagem e durante duas horas
tentar-se-á incutir o amor pelo desabrochar de uma
planta. será o tempo de animais abandonados,
de papéis amarelos e vento nas ruas. um tempo
oblíquo, de muitos profetas que falam sem saber
que palavras usar.

(in O Comportamento das Paisagens; ed. Artefacto, 2011)

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

"Psicanálise da escrita", de Ana Luísa Amaral

Mesmo que fale de sol e de montanhas,
mesmo que cante os ínfimos espaços
ou as grandes verdades,
todo o poema
é sobre aquele
que sobre ele escreve

Quando os traços de si
parecem excluir-se das palavras,
mesmo assim é a si que se descreve
ao escrever-se no texto
que é excisão de si

Todo o poema
é um estado de paixão
cortejando o reflexo
daquele que o criou

Todo o poema
é sobre aquele
que sobre ele escreve
e assim se ama de forma desmedida,
à medida do verso onde a si se contempla
e em vertigem
se afoga

(in Vozes)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

(Ao despertar)

(Um Álvaro de Campos envelhecido lamenta-se por não mais escrever as extensas odes de outros tempos. Pensava nisto ontem à noite, enquanto tentava adormecer, e fazia paralelos impossíveis com a minha vida dissemelhante. Hoje, com outra intensidade de luz, ser-me-ia bastante um punhado certeiro de versos).

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"poema 2", de Ana Luísa Amaral

No meu braço
Cansado
O seu corpo macio
Adormecido

Um quarto do tamanho
Do meu corpo
- E o quarto
Preenchido

(poema integrante de "Outras Metamorfoses da Memória", in Vozes)

domingo, 2 de outubro de 2011

"Fenda", de Carlos Lopes Pires

Por alguma coisa estamos aqui,
subindo e descendo,
fazendo e fazendo,

de todo o lado carregando
o musgo e as pedras
para o poço.

e se alguma coisa tenho
para dar-te

ela está dentro de mim
e não a encontro
senão
na fenda

do meu coração.

(in Onde)