quarta-feira, 28 de abril de 2010

"Fúrias", de Sophia de Mello Breyner Andresen

(Segundo a mitologia grega, as Fúrias eram três divindades vingadoras que viviam no Inferno, subindo à Terra para perseguir os malvados. Ainda que justas, as Fúrias não atendiam a circunstâncias atenuantes, punindo de forma impiedosa).

Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço
E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contra tempo

(in Ilhas)

domingo, 25 de abril de 2010

"Os Dias de Verão", de Sophia de Mello Breyner Andresen

(Ansiando pelos dias de Verão)

Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo

Tempo é de repouso e festa
O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo

(in Dual

sexta-feira, 23 de abril de 2010

"Arte Poética", de Adília Lopes

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

(in Dobra. Poesia Reunida)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Poema de José Bento

Abre esse livro, lê outra vez o poema
que tantas vezes leste:
como tu, não é o que foi ontem,
o que perdeste há meses.

A letra que gravou a pulsação
que sustenta essa página
pede que a humanes e ressurjas
com teu sangue a palavra.

(in Alguns Motetos)

"Death in life / Morte em vida", de Alexander Search

Another day is past, and while it past,
What have I pondered or conceived or read?
Nothing! Another day has gone to waste.
Nothing! Each hour as it is born is dead.

I have done nothing. Time from me has fled,
And unto Beauty not a statue raised!
By thought's firm power no creed nor lie debased
By this young useless and wearied.

Is it my lot then ever to remain
Like a grain of sand upon the beach,
A thing at will of wind, at will of sea?

Alas, that aught that wishes and has pain,
Because e'er fall'n from what its power should reach
Less than a thing inanimate should be!

* * *

Um dia mais passou e ao passar
Que pensei ou li, que foi criado?
Nada! Outro dia passou desperdiçado!
Cada hora já morta ao despontar!

Nada fiz. O tempo me fugiu
E à beleza nem uma estátua ergui!
Na mente firme nem credo ou sonho vi
E a alma inútil em vão se consumiu.

Então me caberá sempre ficar
Qual grão de areia na praia pousado,
Coisa sujeita ao vento, entregue ao mar?

Ah, esse algo a sofrer e a desejar,
Inda menos que um ser inanimado
Sempre aquém do que podia alcançar!

(in Poesia de Alexander Search)

quinta-feira, 8 de abril de 2010