segunda-feira, 19 de outubro de 2015

[Por muito que pense e pense], de Fernando Pessoa


Por muito que pense e pense
No que nunca me disseste,
Teu silêncio não convence.
Faltaste quando vieste.


(in Quadras e Canções de Beber; ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

domingo, 18 de outubro de 2015

Excerto do poema "A viagem", de Charles Baudelaire

Saber amargo, o que extraímos da viagem!
O mundo, tão monótono e pequeno, sempre,
Ontem, hoje, amanhã, reflecte a nossa imagem:
Um oásis de horror num deserto de tédio!

É bom partir? ficar? Se podes ficar, fica;
Parte, se for preciso. Um corre, o outro esconde-se
Pra iludir o zeloso e funesto inimigo,
O Tempo!

(excerto de poema "A viagem", VII, in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

"O cachimbo", de Charles Baudelaire

Sou o cachimbo de um autor;
Vê-se, ao olhar prà minha cara,
Como a de um abissínio ou cafre,
Que o meu dono é bom fumador.

Quando está repleto de dor
Fumego como uma choupana
Onde alguém cozinha e vai esperando
O regresso do lavrador.

Enlaço e embalo a sua alma
Na movediça rede azul
Que me sobe da boca em fogo

E vou espalhando um forte bálsamo
Que agrada ao coração e cura
Todo o cansaço do seu espírito.

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

terça-feira, 29 de setembro de 2015

[Sempre construíste pensamentos], de Richard Zimler

Sempre construíste pensamentos
desde que nasceste:
é tempo de os deixar cair.

* * *

You have juggled thoughts
without pause since you were born:
Time to let them fall.

(in A Voz do Amor: 72 Haiku Cabalísticos / Love's Voice: 72 Kabbalistic Haiku; ed. AL, 2015)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

"Os mochos", de Charles Baudelaire

Sob alguns teixos que os abrigam
Lá estão os mochos, enfileiram;
Tal como os deuses estrangeiros,
Dardejam o rubro olhar. Meditam.

Sem se mexer lá ficarão
Até à hora melancólica
Em que, empurrando o oblíquo sol,
As trevas se estabelecerão.

Essa atitude ensina ao sábio
Que neste mundo há que temer
Todo o tumulto e movimento;

O ébrio das sombras que passam
Arrastará sempre o castigo
De outro lugar ter pretendido.

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

[A tua alma começará], de Richard Zimler

A tua alma começará
a sentir a sua profundidade
quando deixares de fugir do silêncio.
 
* * *
 
Your soul will begin
to sense its depth when you stop
running from silence.
 
 (in A Voz do Amor: 72 Haiku Cabalísticos / Love's Voice: 72 Kabbalistic Haiku; ed. AL, 2015)

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

(O primeiro livro de poesia de um romancista)

(O poemapossivel agradece a gentileza de Richard Zimler pela oferta deste seu livro de estreia no domínio da Poesia. Folheadas sem rumo as páginas deste volume, já se vislumbraram alguns poemas que muito enriquecerão este vosso blogue.)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

"Os gatos", de Charles Baudelaire

Os férvidos amantes e os austeros sábios
Na idade madura, ambos sabem amar
Os gatos fortes, meigos, orgulho do lar,
Que, tal como eles, são friorentos, sedentários.

Amigos da volúpia e também da ciência,
Procuram o horror das trevas, o silêncio;
E tê-los-ia o Érebo por corcéis fúnebres
Se um dia à servidão dobrassem o orgulho.

Adoptam ao sonhar as nobres atitudes
Das esfinges deitadas nos confins do mundo,
Parecendo adormecer no seu sonho sem fim;

Há mágicas centelhas nos seus rins fecundos
E alguns farrapos de oiro, alguma areia fina,
Estrelando vagamente as místicas pupilas.

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

[Teus olhos de quem não quer], de Fernando Pessoa

Teus olhos de quem não quer
Procuram quem eu não sei.
Se um dia o amor vier
Olharás como eu olhei.

(in Quadras e Canções de Beber; ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

[Se há uma nuvem que passa], de Fernando Pessoa

Se há uma nuvem que passa
Passa uma sombra também.
Ninguém diga que é desgraça
Não ter o que se não tem.

(in Quadras e Canções de Beber; ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

[Todos os dias que passam], de Fernando Pessoa

Todos os dias que passam
Sem passares por aqui
São dias em que só passa
O estar a esperar-te a ti.

(in Quadras e Canções de Beber; ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"O morto prazenteiro", de Charles Baudelaire

Onde haja caracóis, numa terra fecunda
Onde estenda à vontade o meu velho esqueleto,
Desejo eu mesmo abrir uma cova profunda
E como um tubarão dormir no esquecimento.

Odeio os mausoléus, odeio os testamentos,
E em vez de suplicar as lágrimas do mundo,
Preferia convidar os corvos lazarentos
A sangrar cada naco da carcaça imunda.

Sem ouvidos nem olhos, vermes! companheiros,
Vede a ir ter convosco um morto prazenteiro;
Filhos da podridão, filósofos da estúrdia,

Sobre as minhas ruínas ide sem remorsos
E dizei se ainda existem algumas torturas
Prò meu corpo sem alma e bem morto entre os mortos!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

[Todas as coisas que dizes], de Fernando Pessoa

Todas as coisas que dizes
Afinal não são verdade.
Mas, se nos fazem felizes,
Isso é a felicidade...

(in Quadras e Canções de Beber; ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

sábado, 5 de setembro de 2015

[Estava eu numa noite com uma atroz judia], de Charles Baudelaire

Estava eu numa noite com uma atroz judia,
Como ao pé de um cadáver um outro estendido,
E então pus-me a pensar, junto ao corpo vendido,
Nessa triste beleza de que eu prescindia.

E logo lhe evoquei a inata majestade,
A graça do olhar tão cheio de vigor,
Os cabelos, parecendo um elmo perfumado,
Cuja recordação me desperta o amor.

Pois com fervor teria beijado o teu corpo
Desde os viçosos pés até às tranças negras,
Pra te mostrar o cofre das maiores carícias,

Se uma noite num choro espontâneo, sem esforço,
Ó rainha cruel! conseguisses ao menos
Turvar o resplendor dessas frias pupilas.

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

"Parábola das mãos", de Juan Manuel Roca

Esta mão pega num fruto,
A outra afasta-o.
Um mão recebe o falcão, tira uma luva,
A outra afugenta-o, pega numa tocha.
Uma mão escreve cartas de amor
Que a seua equívoca siamesa enche de injúrias.
Uma mão bendiz, a outra ameaça.
Uma desenha um cavalo,
A outra, um puma que o assusta.
Pinta um lago a mão direita:
Afoga-o num rio de tinta, a esquerda.
Uma mão desenha a palavra pássaro,
A outra escreve a sua jaula.
Há uma mão de luz que constrói escadas,
Uma sombra que solta degraus.
Mas chega a noite. Chega
Quando cansadas de se agredir,
Fazem trégua na sua guerra,
Porque procuram o teu corpo.

(in Os Cinco Enterros de Pessoa; trad. Nuno Júdice, ed. Glaciar, 2014)

[As verdades são mentiras], de Fernando Pessoa

As verdades são mentiras
Porque é gente quem as diz
As tristezas - se m'as tiras,
Como é que hei-de ser feliz?

(in Quadras e Canções de Beber; ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

sábado, 29 de agosto de 2015

"Sed non satiata", de Charles Baudelaire

Estranha deusa, morena como são as noites,
Com perfumes de almíscar e tabaco havano,
Talvez obra de um mago, um Fausto da savana,
Bruxa de ébano ou filha de vis meias-noites,

Prefiro, em vez de todos os vinhos e do ópio,
O elixir dessa boca onde se pavoneia
O amor; quando pra ti partem os meus desejos
Teus olhos são cisterna onde os tédios afogo.

Por esses olhos negros respira a tua alma,
Ó demônio sem dó! a tua chama acalma!
Que eu não posso abraçar-te nove vezes, qual Estige,

Nem consigo, ai de mim! Megera libertina,
Pra ti quebrar a força e acabar contigo
No teu leito infernal tornar-me Prosérpina!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

"O inimigo", de Charles Baudelaire

Foi medonha tormenta a minha mocidade,
Aqui e além cortada por brilhantes sóis;
A chuva e os trovões fizeram tais estragos
Que poucos frutos rubros no jardim me sobram.

E eis-me já em pleno Outono das ideias,
Quando é preciso usar os ancinhos e a pá
Pra arranjar outra vez a terra, após a cheia,
Onde a água escavou, quais tumbas, grandes valas.

E quem sabe se as flores que eu sonho, renovadas,
Poderão encontrar nessa areia lavada
O místico alimento que lhes dê vigor?

- Ó dor! Ó minha dor! O Tempo engole a vida,
E o que nos rói o peito, esse obscuro Inimigo,
Com o sangue que perdemos cresce e ganha força!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

"Shadows cease low. Now the bright prentice Sun / As sombras cessam. Já o sol, empregado", de Fernando Pessoa

Shadows cease low. Now the bright prentice Sun
Takes down the shutters of the shop of Life,
And, counter wiped, the day's toil is begun
Of selling means no Hope, worker Joy's wife.

But what is this to me that, beggared deep,
No more than up and down the street repeat
My dream of what I'd buy, were not buying step
For the chilled walk of my loss-palsied feet?

I see the buyers enter and come out,
Stayed at the corner of occasions lost;
I hear the talk, the laugh, the casual bout
Of buying, and I half forget the post

Of mendicant exclusion, mine eyes being
Taken up more with looking that with seeing.

* * *

As sombras cessam. Já o sol, empregado,
Puxa as persianas da loja do Viver
E, limpo o balcão, começa o trabalho
De vendas à Esperança, esposa do Prazer.

Mas o que me resta, profundo mendigo,
Senão repetir, na rua a caminhar,
Meu sonho de compras, não fosse excessivo
P'ra meus pés gelados, tolhido o andar.

Vejo os compradores entrar e sair,
Parado à esquina da perdida ocasião;
Ouço a conversa, o riso, a casual crise
De compras e quase esqueço a minha condição

De mendiga exclusão, ficando a olhar,
Menos preso ao ver do que ao contemplar.

(in Poemas Ingleses. Vol. II; trad. Luísa Freire, ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

"When slattern Time, worn out with toil of wearing / Quando o Tempo esquecido, gasto a lutar", de Fernando Pessoa

When slattern Time, worn out with toil of wearing,
With loose‑tied pack shall trudge upon my years,
And I shall feel that forced occasion nearing
That despair's self (that must live to be) fears,

I, being beggared of all wealth of hope -
So prodigal have I to wishes been -
Shall with known uselessness for the coin grope
To pay that the hour’s ending be serene.

I shall not enter the great silent cave
With curious ardour, or ease out of sun,
But all that with me I shall then still have
Will be a coward rage that all is done.

No hope the cave's a passage shall control
Fear of the immediate night of the shown hole.

* * *

Quando o Tempo esquecido, gasto a lutar,
Com seu fardo solto a custo vier,
E eu sentir a fatal hora chegar
E o temor (pois sem vida não é) de ser,

Eu, do bem da esp'rança sendo mendigo -
Embora tão pródigo no desejar -
Buscarei a moeda, inútil já digo,
Com que um fim sereno possa pagar.

Na funda cova silente entrarei
Sem estar curioso ou do sol cansado,
Mas tudo o que então comigo terei
É raiva cobarde por tudo acabado.

O crer que a cova é passagem não detém
O medo da noite que do fundo vem.

(in Poemas Ingleses. Vol. II; trad. Luísa Freire, ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Primeira estrofe do poema "Sorrow no more for the faded rose", de Fernando Pessoa

Sorrow no more for the faded rose,
Nor of the yellow lily despair.
These, as we see them, are but their shows.
They are elsewhere.

(...)

* * *

Não lamentes mais a rosa em decadência,
Nem do lírio amarelo a desolação.
Eles, como os vemos, são só aparência.
Noutro lugar estão.

(...)

(in Poemas Ingleses. Vol. II; trad. Luísa Freire, ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

"Ao leitor", de Charles Baudelaire

O erro, a mesquinhez, o pecado, a tolice,
Excitam-nos o corpo e ocupam-nos o espírito,
Mas sempre alimentamos remorsos felizes
Como os mendigos fazem aos seus parasitas.

Com pecados teimosos e remissões frouxas,
As nossa confissões largamente cobramos,
E ao caminho da lama, contentes, voltamos,
Crendo com choros vis lavar as nódoas todas.

Na almofada do mal está Satã Trimegisto
Que embala devagar a nossa alma encantada
E até o metal rico da nossa vontade
Vai sendo evaporado por esse alquimista.

Os cordéis que nos puxam, prende-os o Diabo!
Vemos que nos atraem as coisas nojentas;
Sem horror, através das trevas fedorentas,
Ao Inferno descemos, cada dia um passo.

Como um devasso pobre que devora e beija
O seio encarquilhado da velha rameira,
Colhemos, ao passar, clandestino prazer
Que como uma laranja moída esprememos.

Como um milhão de vermes, nas nossas cabeças
Enche-se até fartar um povo de Demónios,
E quando respiramos desce-nos a Morte
Aos pulmões, como um rio de surdos lamentos.

Se o estupro ou o veneno, o incêndio, o punhal
Ainda não enfeitaram com desenhos lindos
A banal talagarça dos nossos destinos,
É porque não mostrou arrojo a nossa alma.

Mas no meio de chacais, panteras ou cadelas,
Escorpiões ou macacos, serpentes, abutres,
Monstros que grasnam, rosnam, rastejam e uivam,
Por entre os nossos vícios, galeria abjecta,

Existe um bem mais feio, mais cruel, imundo!
Que, mesmo recusando gestos ou clamores,
Facilmente faria da terra um destroço
E num simples bocejo engoliria o mundo;

É o Tédio! - Com o olhar chorando sem razão,
Vai fumando o cachimbo e sonha cadafalsos.
Conheces bem, leitor, tal monstro delicado,
- Hipócrita leitor, - meu igual, - meu irmão!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Excerto de poema "Now are no Janus' temple-doors thrown wide", de Fernando Pessoa

(...)
With cuirass and with pike we laid aside
All that made battle worth the death in it.
Our science‑made war‑gestures now deride
The great eternal things that war doth fit
With helm and armour.
With mortal pomp yet pomp. We are on death's side.
(...)

* * *

(...)
Com couraça e lança foi tudo arredado
O que digna tornava a morte pela luta.
O bélico gesto, em ciência transformado,
Desdenha do ideal eterno que se ajusta
À batalha com elmo e armadura.
Com pompa mortal, mas pompa. A morte ao lado.
(...)

(in Poemas Ingleses. Vol. II; trad. Luísa Freire, ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

segunda-feira, 27 de julho de 2015

"Alentejo seen from the train / Alentejo visto do comboio", de Fernando Pessoa

Nothing with nothing around it
And a few trees in between
None of which very clearly green,
Where no river or flower pays a visit.
If there be a hell, I've found it,
For if ain't here, where the Devil is it?

* * *

Nada, tendo nada em seu redor
E, de permeio, algumas árvores somente
Nenhuma delas verde claramente,
Onde nada aparece, rio ou flor.
Se acaso há um inferno, ele aqui está,
Pois, se não aqui, onde o Diabo estará?

(in Poemas Ingleses. Vol. II; trad. Luísa Freire, ed. Planeta DeAgostini/Assírio & Alvim, 2006)

segunda-feira, 29 de junho de 2015

[estes poemas que chegam], de Herberto Helder

estes poemas que chegam
do meio da escuridão
de que ficamos incertos
se têem autor ou não
poemas às vezes perto
da nossa própria razão
que nos podem fazer ver
o dentro da nossa morte
as forças fora de nós
e a matéria da voz
fabricada no mais fundo
de outro silêncio do mundo
que serão eles senão
uma imensidão de voz
que vem na terra calada
do lado da solidão
estes poemas que avançam
no meio da escuridão
até não serem mais nada
que lápis papel e mão
e esta tremenda atenção
este nada
uma cegueira que apaga
a luz por trás de outra mão
tudo o que acende e me apaga
alumiação de mais nada
que a mão parada
alumiação então
de que esta mão me conduz
por descaminhos de luz
ao centro da escuridão
que é fácil a rima em ão
difícil é ver se a luz
rima ou não rima com a mão

(in Poemas Canhotos; ed. Porto Editora, 2015)

sábado, 27 de junho de 2015

"Resgate", de Manuel Alegre

Há qualquer coisa aqui de que não gostam
da terra das pessoas ou talvez
deles próprios
cortam isto e aquilo e sobretudo
cortam em nós
culpados sem sabermos de quê
transformados em números estatísticas
défices de vida e de sonho
dívida pública dívida
de alma
há qualquer coisa em nós de que não gostam
talvez o riso esse
desperdício.
Trazem palavras de outra língua
e quando falam a boca não tem lábios
trazem sermões e regras e dias sem futuro
nós pecadores do Sul nos confessamos
amamos a terra o vinho o sol o mar
amamos o amor e não pedimos desculpa.

Por isso podem cortar
punir
tirar a música às vogais
recrutar quem os sirva
não podem cortar o Verão
nem o azul que mora
aqui
não podem cortar quem somos.

(in Bairro Ocidental; ed. D. Quixote, 2015)

sexta-feira, 26 de junho de 2015

[os que dizem como deve ser], de Herberto Helder

os que dizem como deve ser:
e forçosamente não se aclara nada,
se é que alguma vez houve alguma coisa
ouvida ou entendida ou revelada
¡e o que eles devoraram de alfarroba,
e o desperdício de água clara!

(in Poemas Canhotos; ed. Porto editora, 2015)

quinta-feira, 25 de junho de 2015

[em boa verdade houve um tempo em que tive uma ou duas artes], de Herberto Helder

em boa verdade houve um tempo em que tive uma ou duas artes
[poéticas
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica e traço meia
[dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei a encher
[umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse sob as
[minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevi, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a sua própria
[profundidade

(in Poemas Canhotos; ed. Porto Editora, 2015)

terça-feira, 16 de junho de 2015

"Pátria minha", de Manuel Alegre

Entre nós e o futuro há arame farpado
levaram o que se via além de nós
não resta mais que a ponta do nariz
como esperar agora o inesperado?
Somos do Sul e o saldo somos nós
contra o bezerro de oiro o teu quadrado
o poema tem de ser o teu país.

Entre nós e amanhã há uma taxa de juro
uma empresa de rating Bruxelas Berlim
entre hoje e o futuro há outra vez um muro
resgate é a palavra que nos diz
tens de explodir o não dentro do sim
não te feches em torres de marfim
o poema tem de ser o teu país.

Toutinegras virão cantar contigo
e os melros que se escondem nas vogais
e o morse aflito e rouco da perdiz
nas sílabas que avisam do perigo
e as lanças das consoantes e os sinais
por dentro das palavras que mais
do que palavras são o teu país.

Oiço dizer Europa mas Europa
é uma nau a chegar ao nunca visto
Flor de la Mar: e o Mundo em tua boca.
Navegação: madre das cousas. Isto
é Europa. País no mar. E vento à popa.
Não este não arrisco logo existo
de cócoras à espera de uma sopa.

Um cheiro de jasmim a brisa nos salgueiros
entre nós e o futuro um silêncio nos diz.
O saldo somos nós: trinta dinheiros.
Pátria minha quem foi que te não quis?
Entre nós e o futuro a terra e a raiz
e a Flor de la Mar e os velhos marinheiros
e o poema onde respira o teu país.

(in O Bairro Ocidental; ed. D. Quixote, 2015)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

[¿que interessa fazer a barba se é tudo para cremar], de Herberto Helder

¿que interessa fazer a barba se é tudo para cremar,
desde as unhas dos pés aos espelhos soberanos -
Leonardo, Camões, Newton, Amadeus Mozart,
et coetera
que interessa?
uma mulher bem temperada - disse o cozinheiro antropófago,
mãos de assasino sobre as teclas, e algo de muito
puro se criava
- ó mundo, deixa-te entender um pouco
desde nascer a morrer que não entendo nada,
só a música que me embebeda,
mas quero ir mais depressa,
nada de estelas de pedra aproveitadas de um pequeno meteoro
[áspero como o teu nome,
forte como o teu emprego na morte,
e súbito como esse mesmo nome:
ou então nome que nasce:
poalha cega que lentamente assenta no chão raso,
nome contrário

(in Poemas Canhotos; ed. Porto Editora, 2015)

quarta-feira, 10 de junho de 2015

"Arte de pontaria", de Manuel Alegre

Invadiram os séculos que estão dentro de nós
invadiram a língua o canto o ritmo
antes fossem exércitos fardados
antes as botas de um invasor visível
não estes missionários da nova fé
com seus mercados sobre os nossos ombros
e seus discursos de sílabas pontiagudas
para gente de espinha de curvar.
Quando eles falam o céu fica cinzento
e há um rasto de cinza e desamparo.
Apetece pegar no poema
e disparar.

(in O Bairro Ocidental; ed. D. Quixote, 2015)

segunda-feira, 18 de maio de 2015

[A mim que me afogo], de Paul Celan

A mim que me afogo
atiras-me com ouro:
talvez um peixe
se deixe subornar.

(in Sete Rosas Mais Tarde. Antologia poética; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1993)

sexta-feira, 15 de maio de 2015

[Como tu vais morrendo em mim], de Paul Celan

Como tu vais morrendo em mim:

no último
nó de respiração
desfeito
estás ainda tu com um
estilhaço
de vida

(in Sete Rosas Mais Tarde. Antologia poética; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1993)

quarta-feira, 13 de maio de 2015

"Fuga da morte", de Paul Celan

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro
[Margarete
escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena-nos agora toquem para começar a dança

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro
[Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares aí
[não ficamos apertados

Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros
[cantem e toquem
leva a mão ao ferro que traz à cintura balança-o azuis são os seus
[olhos
enterrem as pás mais fundo vocês aí e vocês outros continuem a
[tocar para a dança

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes

E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre
[que veio da Alemanha
grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo
[subireis aos céus
e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre que que veio da
[Alemanha
bebemos-te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os teus olhos
atinge-te com bala de chumbo acerta-te em cheio
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
atiça contra nós os seus cães oferece-nos um túmulo nos ares
brinca com serpentes e sonha a morte é um mestre que veio da
[Alemanha
os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith

(in Sete Rosas Mais Tarde. Antologia poética; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1993)

segunda-feira, 11 de maio de 2015

"Elogio da distância", de Paul Celan

Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

(in Sete Rosas Mais Tarde. Antologia poética; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1993)

sexta-feira, 24 de abril de 2015

quinta-feira, 23 de abril de 2015

"Semáforos da Constituição", de Jorge de Sousa Braga

Verde amarelo vermelho...
Para quando um semáforo
com as cores todas do arco-íris?

(in Fogo sobre Fogo; ed. Fenda, 1998)

quarta-feira, 22 de abril de 2015

"Magnólias", de Jorge de Sousa Braga

Esqueceram-se das folhas
tão grande era a pressa
de florirem

(in Fogo sobre Fogo; ed. Fenda, 1998)

segunda-feira, 20 de abril de 2015

"Mimosas", de Jorge de Sousa Braga

Todos os anos na mesma altura
a montanha veste o mesmo vestido amarelo
para ver se ainda lhe serve na cintura

(in Fogo sobre Fogo; ed. Fenda, 1998)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Dois haikus de Jorge de Sousa Braga

Nem todos os frutos vermelhos
merecem o céu
da tua boca

* * *

Mais do que uma vez
atravessei a primavera
com os olhos fechados

(in Fogo sobre Fogo; ed. Fenda, 1998)

quinta-feira, 16 de abril de 2015

quarta-feira, 15 de abril de 2015

segunda-feira, 13 de abril de 2015

[nada do que te disser], de Dinarte Vasconcelos

nada do que te disser
abalará o matadouro ou a fornalha

o silêncio seria uma hipótese administrativa
mas suspendo-o porque quero viver

o meu epitáfio esteve sempre escrito
nas linhas que suturam a tua ferida

nos bafos que levam
e fazem pousar as cinzas

é bom que o saibamos
antes e depois dos holocaustos

se desprezarmos as palavras
tudo é transmissível – tudo se assemelha

emergem némesis siamesas
e oposições forjam-se do mesmo veio

por isso calo o silêncio
dos rituais e da burocracia higiénica

– cicatriz à tua ilharga
é chaga minha

– o que te faz arder
é o que me fará recordar

(in 70 poemas para Adorno; ed. Nova Delphi, 2015)

sábado, 28 de março de 2015

[Sem vitória, vives comigo], de Paul Celan

Sem vitória, vives comigo
pequena
e carregada.

Só lá fora, onde
as nossas almas ainda estão, na terra de ninguém,
é que se canta. Canta-se
no brilho
daquilo que passou ao nosso lado.

Nem nuvem, nem estrela – nós
não olhamos para cima.

Chega-te mais, anda:
para que não sopre duas vezes o vento
através da nossa
casa aberta.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

quarta-feira, 25 de março de 2015

[Oiço tanta coisa de vós], de Paul Celan

Oiço tanta coisa de vós
que não oiço mais
do que ouvir,

vejo tanta coisa de vós
que não vejo mais
do que ver,

tanta coisa me assedia
com desconversa
que dou por mim a falar
com quem conversa,
que dou por mim
a falar como quem
fica em silêncio.

Eu vivo, forte.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

domingo, 22 de março de 2015

(Dois versos apenas, de Pablo Nerura)

Quero fazer contigo
o que a primavera faz com as cerejeira.
 
(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

quinta-feira, 19 de março de 2015

[Com o vento pelas costas], de Paul Celan

Com o vento pelas costas
morro e apago-me
na grande monção -
é então que verdadeiramente vivo.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

segunda-feira, 16 de março de 2015

[A dor dorme com as palavras, dorme, dorme], de Paul Celan

A dor dorme com as palavras, dorme, dorme,
Dorme e vai buscar nomes, nomes.
Dorme e a dormir morre e renasce.

Uma semente germina, sabias?
Germina, germina
uma semente da noite, nas ondas, um povo
começa a cescer, uma estirpe
da-dor-e-do-nome —: firme
e como que desde sempre submersa
e fiel —: a não-
-existente,
a viva
e minha, a
tua.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

sexta-feira, 13 de março de 2015

[Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela], de Pablo Neruda

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever, por exemplo: «A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe.»

O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a, e por vezes ela também me amou.

Em noites como esta tive-a eu nos meu braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi já.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.

Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, e ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a amo, é verdade, mas tanto que eu a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
a voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.

Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta a tive nos meus braços,
a minha alma não se contenta com havê-la perdido.

Embora esta seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

quarta-feira, 11 de março de 2015

"Grão-de-Lobo", de Paul Celan

Põe o ferrolho à porta: há
rosas na casa.

sete rosas na casa.

o candelabro de sete braços na casa.
O nosso
filho
sabe isso e dorme.

(Lá longe, em Michailowka, na
Ucrânia, onde
eles me mataram pai e mãe: que
floria aí, que
floresce aí? Que
flor, mãe,
te fazia doer aí
com o seu nome,
mãe, a ti,
que dizias grão-de-lobo, e não
lupino?

Ontem
veio um deles e
matou-te
outra vez no
meu poema.

Mãe,
mãe, que
mão apertei eu
quando com as tuas
palavras fui para
a Alemanha?

Em Aussig, dizias tu sempre, em
Aussig junto
ao Elba,
durante
a fuga.
Mãe, aí moravam
assassinos.

Mãe, eu
escrevi cartas.
Mãe, não veio resposta.
Mãe, veio uma resposta.

Mãe, eu
escrevi cartas a -
Mãe, eles escrevem poemas.
Mãe, eles não os escreveriam
se não fosse o poema que
eu escrevi, por
ti, pelo
amor
do teu
Deus.
Bendito, dizias tu, seja
o Eterno, e
louvado, três
vezes
Amen.

Mãe, eles ficam calados.
Mãe, eles consentem que
a ignomínia me difame.
Mãe, ninguém
cala a boca aos assassinos.

Mãe, eles escrevem poemas.
Oh,
mãe, quanto
chão do mais estranho dá o teu fruto!
Dá esse fruto e alimenta
os que matam!!

Mãe, estou
perdido.
Mãe, estamos
perdidos.
Mãe, o meu filho, que
se parece contigo.)

Põe o ferrolho à porta: há
rosas na casa.

sete rosas na casa.

o candelabro de sete braços na casa.
O nosso
filho
sabe isso e dorme.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

segunda-feira, 9 de março de 2015

[Aqui te amo], de Pablo Neruda

Aqui te amo.
Nos sombrios pinheiros desenreda-se o vento.
A lua fosforesce sobre as águas errantes.
Andam dias iguais a perseguir-se.

Desperta-se a névoa em dançantes figuras.
Uma gaivota de prata desprende-se do ocaso.
Às vezes uma vela. Altas, altas estrelas.
Ou a cruz negra de um barco.
Sozinho.

Às vezes amanheço, e até a alma está húmida.
Soa, ressoa o mar ao longe.
Este é um porto.
Aqui te amo.

Aqui te amo e em vão te oculta o horizonte.
Eu continuo a amar-te entre estas frias coisas.
Às vezes vão meus beijos nesses navios graves
que correm pelo mar aonde nunca chegam.
Já me vejo esquecido como estas velhas âncoras.
São mais tristes os cais quando fundeia a tarde.
A minha vida cansa-se inutilmente faminta.
Eu amo o que não tenho. E tu estás tão distante.
O meu tédio forceja com os lentos crepúsculos.
Mas a noite aparece e começa a cantar-me.
A lua faz girar a sua rodagem de sonho.

Olha-me com os teus olhos as estrelas maiores.
E como eu te amo, os pinheiros no vento
querem cantar o teu nome com as folhas de arame.

(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

sexta-feira, 6 de março de 2015

"A Morte", de Paul Celan

A morte é uma flor que só abre uma vez.
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora da estação.

E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.
Deixa-me ser o caule forte da sua alegria.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

quinta-feira, 5 de março de 2015

[Meu coração partiu-se em quatro partes], de Luís Adriano Carlos

Meu coração partiu-se em quatro partes,
de acordo com as regras da ciência,
ficou a dor comigo, fico assim,
tudo me falta agora, o doce tom
dessa paixão ardente, as queimaduras
da alma. E nem sequer se despediu,
a negra dor me condenou. Ainda
não deixei de chorar meu coração,
que em quatro partes se partiu inteiro,
e já não posso amar a minha dama.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

terça-feira, 3 de março de 2015

[Também este crepúsculo nós perdemos], de Pablo Neruda

Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.

Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.

Às vezes como uma moeda
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.

Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que tu me conheces.

Onde estavas então?
Entre que gente?
Dizendo que palavras?
Porque vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?

Caiu o livro em que sempre pegamos ao crepúsculo,
e como um cão ferido rodou a minha capa aos pés.

Sempre, sempre te afastas pela tarde
para onde o crepúsculo corre apagando estátuas.


(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

segunda-feira, 2 de março de 2015

[Escrever o problema com mestria], de Luís Adriano Carlos

Escrever o problema com mestria
de gran compositor, e em figura
de confluir o excesso na experiência.
Depois que ao ritmo se comova o gesto,
a falta de um lugar por harmonia
exígua nos pedaços da estrutura.
Deste saber se faz uma ciência
lírica em cada nó, em cada resto
do problema: figura analisável
ao centro da engrenagem no papel.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

[Para que tu me ouças], de Pablo Neruda

Para que tu me ouças
as minhas palavras
adelgaçam-se por vezes
como o rasto das gaivotas sobre as praias.

Colar, guizo ébrio
para as tuas mãos suaves como as uvas.

E vejo-as tão longe, as minhas palavras.
Mais que minhas são tuas.
Vão trepando pela minha velha dor como a hera.

Elas trepam assim pelas paredes húmidas.
Tu é que és a culpada deste jogo sangrento.
Elas vão a fugir do meu escuro refugio.
Tu enches tudo, amada, enches tudo.

Antes de ti povoaram a solidão que ocupas,
e estão habituadas mais que tu à minha tristeza.

Agora quero que digam o que eu quero dizer-te
para que tu me ouças como quero que me ouças.

O vento da angústia ainda costuma arrastá-las.
Furacões de sonhos ainda por vezes as derrubam.
Tu escutas outras vozes na minha voz dorida.
Pranto de velhas bocas, sangue de velhas suplicas.
Ama-me, companheira. Não me abandones. Segue-me.
Segue-me, companheira, nessa onda de angústia.

Mas vão-se tingindo com o teu amor as minhas palavras.
Ocupas tudo, amada, ocupas tudo.

Vou fazendo de todas um colar infinito
para as tuas brancas mãos, suaves como as uvas.

(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

[A sabedoria é um dom de quem na tem], de Luís Adriano Carlos

A sabedoria é um dom de quem na tem.
Muitas maneiras há porém de a ter
e de a não ter: conforme os homens sejam
a ela dados ou furtados; con-
forme administrem o seu uso recto
entre os pares; conforme saber saibam,
e mais do que se aduz ainda. Tudo
se faz conforme para soluçar
o problema: de em nós haver o sábio
que outros deixam de ter, por nosso bem.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

[Delimitados somos pelos deuses], de Luís Adriano Carlos

Delimitados somos pelos deuses,
nesta figura breve de escrever
o traço em que buscamos infinito.
Assim seremos tudo, apenas tudo,
e o quanto imaginarmos no poema,
lábio fendido que se cava em céu,
de coração aberto ao pensamento.
E ainda a confluência determina,
delimitada a forma da figura,
que tudo recomece até ao fim.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

[Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas], de Pablo Neruda

Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas,
assemelhas-te ao mundo no teu jeito de entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.

Fui só como um túnel. De mim fugiam os pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra na minha funda.

Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e triste!

Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.

(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

[No corpo esvoaçam as ideias], de Luís Adriano Carlos

No corpo esvoaçam as ideias,
como se fossem pássaros perdidos.
Não se vêem as asas nem os vultos
inumeráveis no trajecto, só
as formas que desenham, geométricas
aparições mentais, e a ilusão
das aves que, perdidas, se parecem
a conjuntos de ideias. Da miragem
em tensas conversões, o corpo emana
abstracta figura, erecta e fria.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

domingo, 15 de fevereiro de 2015

(Depois de um longo silêncio)

O que dizer deste silêncio? Antes de mais, que não é inédito. Já anteriormente houve afastamentos mais ou menos prolongados da poesia e, consequentemente, deste poemapossivel (que, lembre-se, se alimenta de leituras). Como leitor com múltiplos interesses, nem sempre tenho a disposição necessária para ler poesia. Os dias vão-se somando aos dias, o ruído das rotinas e dos afazeres vai-nos atordoando, e quando damos por nós, já passaram semanas ou meses desde o último verso lido. Como é que isto aconteceu? Estarei surdo para a poesia? E agora, o que fazer?
Estou a escrever estas linhas porque hoje regressei à leitura de poesia e conto partilhar alguns poemas nas próximas semanas. Mas não sei o que o futuro me reserva. Presentemente tenho menos acesso a livros de poesia recentes, o que dificulta bastante um dos objetivos que propus a mim mesmo: acompanhar os novos poetas que vão sendo editados, ou as novas edições e reedições de poetas não novatos. Porém, isso não pode justificar a desistência e a não leitura, porque - penso eu - haverá sempre poemas para ler em algum lado, ou versos para revisitar.
Dito isto, não sei se está para durar o poemapossivel, espaço que conta com sete anos de existência. De quando em quando, não consigo fugir ao sentimento da inutilidade de manter este blogue (e a página no Facebook que lhe está associada), mesmo estando ciente que essa inutilidade (a real inutilidade do gesto de lançar versos ao "vento" da blogosfera, e a eventual - e espectável - inutilidade da poesia) serviu de mote para a sua criação. Se é inegável que tal sentimento por vezes desmotiva - e obsta a que não publique os poemas que vou lendo -, vou lutando com maior ou menor gosto.
No que respeito à minha condição de leitor de poesia, tenho que procurar o meu caminho. Em todo o caso, mantendo ou não este blogue, não quero ficar surdo.