quinta-feira, 25 de junho de 2015

[em boa verdade houve um tempo em que tive uma ou duas artes], de Herberto Helder

em boa verdade houve um tempo em que tive uma ou duas artes
[poéticas
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica e traço meia
[dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei a encher
[umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse sob as
[minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevi, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a sua própria
[profundidade

(in Poemas Canhotos; ed. Porto Editora, 2015)

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