sábado, 28 de junho de 2008

(Dias sem poesia)

Glenn Gould interpretando a variação 25 das Variações Goldberg, de J. S. Bach
(Dias sem poesia: procurando na música um refúgio).

quarta-feira, 25 de junho de 2008

"Homens que são como lugares mal situados", de Daniel Faria

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar

(in Poesia)

(O verso que me perseguiu durante parte do dia, sem que o conseguisse evocar correctamente: "Homens encarcerados abrindo-se com facas". Encontrado o verso, o homem por trás destas linhas sente não ter mais a acrescentar).

terça-feira, 24 de junho de 2008

"O Lobo das Estepes", de Hermann Hesse

Eu, lobo das estepes, corro, corro,
a neve cobre o mundo,
da bétula levanta voo o corvo,
mas nunca aparece uma lebre, nunca aparece um cervo.
E como eu amo os cervos!
Se acaso encontrasse algum,
prendia-o com garras e dentes:
é a coisa mais bela em que penso.
Com os sensíveis seria também sensível,
devorava-os todos de extremo a extremo,
bebia-lhes até ao fundo o sangue púrpura e espesso,
e solitariamente uivava pela noite dentro.
Contentava-me com uma lebre.
É tão doce à noite o sabor da sua carne quente.
Porventura foi-me negado tudo quanto possa, um pouco,
alegrar a vida, um pouco apenas?
A minha companheira, há muito que não a tenho,
o pêlo da minha cauda começa a ficar cor de cinza,
e só quando há bastante luz é que vejo.
Agora corro e sonho com cervos,
ouço o vento soprar nas grandes noites de inverno,
e a minha alma dolorosa, entrego-a eu ao demónio.

(in Doze Nós numa Corda.
Poemas mudados para português por Herberto Helder)

domingo, 22 de junho de 2008

"O Doido", de Eucanaã Ferraz


Diziam, verdade ou não, que fora rico e são
e que a despeito dos bens que possuíra

acabara endividado, falido e torto. Talvez
por isso, embora miserável, a cabeça

reta, o andar
de quem governa e pisa terra extensa e sua

em perambular sob o sol absoluto,
absorvido sabe-se lá por que delírios.

Absorvido sabe-se lá por que delírios,
insultava o vento e o vazio numa agitação

de cabelos e palavras e era comum
vê-lo penteando com seus dedos

encardidos a água das praias,
como se província sua,

como sua líquida mulher ou filha.
Viveu assim, entre feridas e piolhos,

até que desceu a noite
e uma pedra veio buscá-lo.

Sítio na Internet: http://eucanaaferraz.com.br/

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Auto-imagem

Curiosa, a auto-imagem: a mediocridade que se reconhece com desconforto, a mediania que se não vê ainda que óbvia, a originalidade mais ou menos presumida, and so on, and so on... O querer, afinal, que nos façam justiça...

* * *

Caixadòclos

- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
- Que és o esticalarica que se vê.

- Público em geral, acaso o meu nome...
- Vai mas é vender banha de cobra!

- Lisboa, meu berço, tu que me conheces...
- Este é um dos que fala sozinho na rua...

- Campdòrique, então, não dizes nada?
- Ai tão silvatávares que ele vem hoje!

- Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
- É o do terceiro, nunca tem dinheiro...

- Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você...
- Dos dois ou três nomes que o surrealismo...

- Ah, agora sim, fazem-me justiça!

- Olha o caixadòclos todo satisfeito
a ler as notícias
...

Alexandre O'Neill
(in Poesias Completas)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

"Guardar", de António Cícero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
Sítio na Internet: www2.uol.com.br/antoniocicero

sábado, 14 de junho de 2008

AJ, V

Sempre que penso uma cousa, traio-a.
Só tendo-a diante de mim devo pensar nela,
Não pensando, mas vendo,
Não com o pensamento, mas com os olhos.
Uma cousa que é visível existe para se ver,
E o que existe para os olhos não tem que existir para o pensamento;
Só existe directamente para os olhos e não para o pensamento.

Olho, e as cousas existem.
Penso e existo só eu.
Alberto Caeiro
(in Poesia)

sexta-feira, 13 de junho de 2008

O inédito de Caeiro, no dia dos 120 anos do nascimento de Pessoa

Gosto do céu porque não creio que ele seja infinito.
Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito, não creio na eternidade.
Creio que o espaço começa algures e algures acaba
E que longe e atrás disso há absolutamente nada.
Creio que o tempo tem um princípio e terá um fim,
E que antes e depois disso não havia tempo.
Porque há-de ser isto falso? Falso é falar de infinitos
Como se soubessemos o que são de os podermos entender.
Não: tudo é uma quantidade de cousas.
Tudo é definido, tudo é limitado, tudo é cousas.

(Leitura e transcrição de Richard Zenith,
publicada no jornal "Público", 13 de Junho de 2008)

quarta-feira, 11 de junho de 2008

"Espera", de Sophia de Mello Breyner Andresen

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

É então que se vê passar o silêncio

Navegação antiquíssima e solene

(in Geografia)

(O poema possível dedica a publicação deste poema à R.)

terça-feira, 10 de junho de 2008

Excerto de "Portugal", de Jorge Sousa Braga, no Dia de Portugal e de Camões

(...)
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de
[Tentugal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha
[vontade
Portugal estás a ouvir-me?
(...)

(in O Poeta Nu)

domingo, 8 de junho de 2008

Arte de Amar

Da minha segunda visita à Feira do Livro trouxe, entre outros livros, a Arte de Amar, de Ovídio. Ainda que não tencionando lê-lo nas próximas semanas, transcrevo aqui os primeiros quatro versos do Livro I.

* * *

Se alguém das nossas gentes não conhece a arte de amar,
leia este canto; e, depois de o ter lido, entregue-se, com sabedoria,
[ao amor.
É a arte e as velas e os remos que fazem mover as naus,
é a arte que faz mover, ligeira, a quadriga. É a arte que deve reger
[o Amor.
(in Arte de Amar, trad. Carlos Ascenso André)

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Discos pedidos

Obviamente: faltava ainda publicar algo do Drummond, poeta que muito aprecio. Depois de uns quantos minutos a folhear o primeiro livro publicado por este autor (Alguma Poesia, de 1930), reencontrei estes versos tão apropriados a um blogue de nome poema possível...

* * *
Poesia

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

(in Alguns Poemas)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Evocando Jorge de Sena

Na minha insuficiente biblioteca de Poesia terei, no máximo, uns três ou quatro poemas do Jorge de Sena, dispersos em compilações várias. Um Poeta esquecido? Talvez não tanto, mas seguramente pouco lembrado quando considerada a dimensão (qualitativa, entenda-se) da sua obra.
Os poemas que já li (felizmente mais do que os três os quatro acima referidos) permitiram-me perceber que aprecio o poeta (bem mais que o ficcionista e o ensaísta - não considero o dramaturgo, porque nunca investi nessa faceta do autor). Neste dia - em que se assinalam trinta anos do seu desaparecimento - publico um poema de Jorge de Sena.

* * *

Fidelidade

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

terça-feira, 3 de junho de 2008

"Universo", de Jorge Sousa Braga

Uns dizem que é aberto
outros que é fechado
outros ainda que é plano

Cada um consoante o seu desejo

Para mim o universo
tem a forma de um beijo.

(in Pó de Estrelas)

domingo, 1 de junho de 2008

"Glenn Gould", poema de Inês Lourenço dedicado a Thomas Bernhard


Procuras o som, a morte de ti mesmo,
centro do teu corpo a percussão que sonhas
límpida,
respiras como as cordas vibram
nessa invenção de vozes
mutuamente perseguidora.

Célere e luminoso expulsas da pauta
os ornatos falsos, os amantes fáceis,
desapossado estás de ti e possuído
pela audível construção impossivelmente perfeita
Steinway Glenn, Glenn Steinway só para Bach.

(in Um Quarto com Cidades ao Fundo)