sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Verso isolado de Luís Quintais

(...)
Como compreender o mundo sem o chorar?

(verso de "Deixar como único testemunho", in A Imprecisa Melancolia)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Um poema mais de Pessoa

Névoa... A manhã é névoa e o dia é este...
Que quero eu dele ou ele quer de mim?
Quero que a minha angústia nada ateste
De si, nem de quem quer um fim...

Quero que a manhã seja como é,
Porque o seria sem o eu querer;
E que eu tenha esse resto vil de fé
Que é ainda querer viver...

(in Poesia 1934-1935 e não datada)

domingo, 26 de outubro de 2008

(Dias sem poesia)


Pat Metheny (guitarra), acompanhado por Chris McBride (contrabaixo),
interpretando temas do filme "Cinema Paraíso"

sábado, 25 de outubro de 2008

"Manhã de Inverno", de Luís Quintais

O verão entrou pelo inverno adentro.
O céu é azul, sem nuvens.
E no meu pensamento voa a cotovia.

O sol não nos abandonou durante todo o dia.
O sol faz de mim um homem como os outros.
Mas só desta vez,

porque da próxima serei menos que o último dos homens.
Afirmações de senso-comum transportam-nos
até ao verão que há dentro do inverno.

A alma, pobre prefiguração das coisas sem lume,
a alma depõe as enregeladas sombras
que a envolvem

e caminha no contentamento sucessivo das horas.
E desta vez direi para que se não regresse
a estes instantes que tudo encerram

para melhor se perderem:
foi disto que se fez o dia,
este primeiro dia na esquecida memória dos homens:

de uma passagem
para a outra margem do inverno, de uma passagem
para a solenidade do verão.

(in A Imprecisa Melancolia)

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Últimos versos de "Quasi"

(Versos que me perseguiram durante a viagem de regresso a casa - feliz bóia, sabê-los de cor! Noites há em que me penaliza um pouco conduzir... Hoje a solução foi repetir quatro versos em voz alta, sem qualquer finalidade concreta, mas acabando por bloquer o pensar e o sentir, a estrada feita de curvas, os reflexos da luz nas árvores, os veículos lentos a ultrapassar, as rotundas mais do que conhecidas... Quatro versos apenas para toda uma viagem... Relido o poema na sua versão completa, fecho o dia. De certa forma, fecho também a vida - ceio qualquer coisa leve e preparo-me para um sono triste).

* * *

(...)
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

sábado, 18 de outubro de 2008

(Nunca defunto o amor)

poema publicado à memória da minha tia M.J. (1949-2008)

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudez de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

Herberto Helder
(in A Faca não corta o fogo [o poema que abre o livro])

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Dois haikus de Matsuo Bashô

Não há arroz
mas tenho na malga
uma flor

* * *

Extingue-se o dia
mas não o canto
da cotovia

(in O Gosto Solitário do Orvalho, trad. Jorge Sousa Braga)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

(A poesia é um vício caro)

(Comprei o novo livro do Herberto Helder. Comprei-o e sinto-me um pouco culpado. A poesia é um vício caro - nem coragem tenho para aqui deixar escrito os euros que tive de dispender para comprar (consumismo?) um livro que não tinha forçosamente que ter na minha biblioteca... Herberto Helder publica um livro que é uma "súmula & inédita", o que significa que somente uma parte - falta avaliar se a maior ou menor - constitui completa novidade... Na capa, uma interessante pintura da Ilda David... mas nem ela me apaga um certo remorso).

Do ortónimo

Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão,
E a retiraste.
Senti ou não?

Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido,
Mas tão de leve...

Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida.

Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre meu braço
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?

Como se tu
Sem o querer
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério
Súbito e etéreo
Que nem soubesses
Que tinha ser.

Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

Fernando Pessoa
(in Poesia, 1934-1935 e não datada)

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Uns versos soltos + um poema de Mia Couto

(Gostei tanto deste livro, que é impossível deixá-lo passar em branco).

* * *

Estes quatro versos, se é permitido fazê-lo com
versos alheios, gostaria de os dedicar aos meus Amigos


(...)
Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo

(versos de "Poema da despedida", in Raiz do Orvalho e Outros Poemas)

* * *

Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousam a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltarei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
quem reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

(in Raiz do Orvalho e Outros Poemas)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Mia Couto: recomendo muito

(Este fim de semana li um livro de Mia Couto - «Raiz de Orvalho e Outros Poemas». Ainda que diferentes dos poemas de um outro livro (mais recente) que já lera do autor, vários foram os versos que me conseguiram encantar; muitos transcrevi, qual anacrónico copista, num dos meus inúteis cadernos (anacronicamente manuscritos). Às vezes, neste livro, o autor escreveu o que eu, há quanto tempo, quero dizer - ou, mais ainda, escreveu o que eu queria ter entendido dentro de mim para poder, se não dizer, ao menos calar (mas calar em consciência).
Ler um livro de poemas é quase sempre um passatempo sereno, mesmo que invariavelmente inútil. Aprende-se a nossa língua, certamente (depreende-se, com sorte, o que sentimos); mas não se aprende a beleza, os bons sentimentos ou qualquer coisa que se possa parecer com a vida... Na vida, somos só nós - face à beleza, aos (bons ou maus) sentimentos, à vida; e cada um com sua espingarda - e não vou ao encontro das metáforas já de todos conhecidas. Li Mia Couto. Agora, pela lógica deste blogue - mas que lógica?, meu Deus, que lógica? - devia publicar um poema, ou somente um verso. Não: hoje, escrevo este parágrafo para me poder sentir culpado com mais razão - não publiquei sequer um verso, apesar de haver versos (oh!, tantos!), não foi possível o poema, mesmo havendo muitos para ler...).

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

(Apesar de)

(A verdade é que, após uma hora de condução nocturna, e apesar de - ligado o computador - me resolver publicar uns versos do Francisco José Viegas, lidos há horas atrás, neste momento sinto que a Poesia não encerra em si mesma qualquer valor.
Talvez seja o cansaço a falar, admito; mas também é possível que o cansaço fale a clara linguagem da evidência.)

"Eu que não sei o que sou", de Francisco José Viegas

Tudo parece gasto, tudo: os corredores, as janelas,
mas sobretudo os nomes das coisas, a forma como
se organizam e se preparam para a morte,
o modo de tudo desaparecer. Um sentido
para as coisas, um sentido para dar às coisas.
Ter medo e saber, esquecer e querer esquecer.
Sento-me à noite na varanda onde o frio chega
primeiro e reparo que tudo parece gasto e sem sentido.

(in Se me comovesse o amor)

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Uma edição fac-similada da «Mensagem» nas livrarias


"Saudade", de Al-Mu'tamid

breve será vencedora
a morte com tal paixão,
se não estancas coração
esta dor que me devora.

ausente minha senhora
mil cuidados me dão guerra.
não logro paz cá na terra.

e o sono, que invoco em vão,
com a sua doce mão
nunca as pálpebras me cerra.

(in Al-Mu'tamid. Poeta do Destino, trad. Adalberto Alves)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

"Balões", de Sylvia Plath

Desde o Natal que eles têm vivido connosco,
Simples e transparentes,
Ovais animais com alma,
A ocupar metade do espaço,
Movendo-se e roçando-se nas sedosas

E etéreas correntes de ar,
A guinarem e a rebentarem
Quando atacados, depois fugindo a toda a pressa para uma calma [ainda tremente.
Serviola amarela, chúmbea azul -
Tais são as estranhas luas com que vivemos,

Não com mobília fúnebre!
Tapetes de corda, paredes brancas
E estes viajantes
Globos de ar fino, vermelhos, verdes,
A encantar

O coração como desejos ou os livres
Pavões que abençoam
O chão antigo com uma das suas penas
Embutida no fundo de peças de metal luzente.
O teu irmão

Mais pequeno faz
O balão dele guinchar como um gato.
Parece estar a ver
Através dele um divertido mundo cor-de-rosa que talvez possa [comer,
Morde,

Depois senta-se
De novo, pote gordo
A admirar um mundo transparente como a água.
Um resto de vermelho
Esfarrapado na sua mão pequena.

(in Ariel, trad. Maria Fernanda Borges)

* * *

(Este é, para mim, um dos mais perturbadores poemas de Ariel, talvez por me parecer demasiado ingénuo ou inocente para caber em tal brutal - e potencialmente autobiográfica - obra... «Um resto de vermelho / Esfarrapado na sua mão pequena.»)

domingo, 5 de outubro de 2008

Uma «brilhante prestação»

Rainer Maria Rilke, nas Cartas a um Jovem Poeta, aconselhava: «Não escreva poemas de amor; evite por ora as formas mais comuns e correntes: são elas as mais difíceis, pois só uma grande força, já amadurecida, conseguirá criar uma coisa própria por entre a abundância de boas e por vezes brilhantes prestações».

* * *

(Às vezes, tropeço em livros extraordinários. Acontecerá, por certo, com todas as pessoas - nuns casos, admito que possam ser outros os objectos desses contactos felizes. Desta vez, num mercado de livros em promoção, comprei o livro organizado, contextualizado e traduzido por Adalberto Alves - "Al-Mu'tamid. Poeta do Destino".
Porquê relembrar as palavras de Rilke? Porque ao ler alguns dos versos deste poeta peninsular do século XI senti - intensamente - estar perante alguns exemplares de "brilhantes prestações" no campo da poesia amorosa.
)

* * *

Separação

só eu sei quanto me dói a separação!
na minha nostalgia fico desterrado
à míngua de encontrar consolação.

à pena, no papel, escrever não é dado
sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
linhas de amor na página da face.

se o meu grande orgulho não obstasse
iria ver-te à noite: orvalho apaixonado
de visita às pétalas da rosa.

Al-Mu'tamid
(Al-Mu'tamid. Poeta do Destino, trad. Adalberto Alves)

(Contraditório)

(A opção pela poesia pode estar errada, mas mesmo admitindo que o esteja, isso não tem qualquer valor. Tudo é igual, já o escrevera.
Insisto neste blogue. Insisto porque insisto. Insisto também por amizade e por uma muito minha - inglória e à partida perdida - luta contra uma espécie de morte ou contra o embrutecimento. Insisto pelas palavras do Sebastião Alba. Insisto porque posso dizer «Fim» a qualquer momento, sem serem necessárias proclamações. Insisto mesmo que neste insistir se esconda um erro
).

sábado, 4 de outubro de 2008

(Para os meus amigos)


Glenn Gould intepretando a Ária das Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach