O poemapossivel agradece a Manuel António Pina
Em Poesia, do sul-coreano Lee Chance-dong, uma mulher idosa, ao mesmo tempo que vive os graves problemas em que se envolve o neto adolescente, frequenta aulas de poesia. Deseja, ou antes, precisa imperiosamente de escrever um poema. O filme não ambiciona entender os misteriosos motivos que levam algumas pessoas a precisar de escrever poesia, e muito menos o que seja isso da poesia, algo que, parafraseando o santo, se não nos perguntam sabemos o que é, se nos perguntam já não sabemos.
As tentativas de definição de poesia acabam quase sempre no beco sem saída da etimologia: poesia seria poesis, o fazer (um fazer feito do seu próprio fazer, diz Jean-Luc Nancy). Daí para diante, tudo se torna opaco. E, no entanto, os homens fazem poesia desde o princípio do mundo. E mesmo em tempos, como os nossos, de prosa de negócios, se continua a escrever e ler poesia, e a dizê-la e ouvi-la. Porquê?, para que? - pois alguma razão há-se haver -, se a poesia não serve aparentemente para nada?
Como uma igreja catacúmbica de poucos e persistentes fiéis, no Porto (e decerto noutros lugares também), gente das mais dispersas idades e experiências de vida reúne-se regularmente em bares, galerias de arte, bibliotecas, salões paroquiais, nas próprias juntas de freguesia, para ler e ouvir ler poesia, partilhando quase clandestinamente uma confusa forma de felicidade completamente incompreensível para os pagãos.
Às vezes sou convidado para alguns desses improváveis encontros, de que os jornais não falam e cuja notícia passa de boca em bo¬ca entre amigos, sempre me perguntando o que move aquele peque¬no universo de donas de casa, reformados, estudantes, funcionários, comerciantes (num deles até um ciclista profissional conheci), o que os levará ali a todos, em vez de, como a maioria dos outros, ficarem em casa a ver televisão ou passarem as tardes de fim-de-semana a ver montras nos centros comerciais. Sempre me perguntando e nunca encontrando resposta razoável.
Depois, a poesia tem ainda outra e controversa vertente, a dos que escrevem (e, de novo: porque?, para que?) poesia. A poesia não se compra, a poesia não se vende, ninguém enriquece a escrever ou a editar poesia; a própria palavra «poeta» é hoje, em determinados contextos, uma qualificação quase tão desprestigiante quanto a de «filósofo»...
É certo que muitos poetas parecem convictos de que, escrevendo poesia, «se vão da lei da morte libertando». Só que a camoniana metáfora é apenas isso, metáfora, e ninguém se liberta da lei da morte. Acreditam alguns (humana, demasiadamente humana, delusão) que existirá uma coisa, uma espécie de santidade laica, chamada «posteridade», e labutam incansavelmente por ela, contra o esquecimento inevitável e por um lugar, como dizia um poeta meu amigo hoje já praticamente esquecido, na memória dos «vindouros». Lutar contra a morte é decerto belo se se tem consciência de que é uma batalha perdida e, apesar disso, se persiste; mas quando se acredita que é possível vencer é uma coisa tristíssima, para não dizer (seria cruel de mais) cómica.
Não, a poesia, o que quer que seja a poesia, não protege da morte nem do esquecimento (pois tudo será esquecido, mais ano menos ano, mais século menos século, mais milénio menos milénio; e, visto a suficiente distância, tão-só da Lua ou de Alfa de Centauro, tudo é fútil); a poesia ajuda, mas que sei eu?, a viver e a encontrar nas palavras efémeros instantes de coincidência connosco mesmos e com os nossos medos e desejos. O que, à nossa humana e irrelevante medida, já não será decerto pouco.
Talvez, quem sabe?, a poesia sirva afinal para alguma coisa.
(in Notícias Magazine, edição de 25 de Dezembro de 2011)