quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

(Rainy day)

(Tantos minutos passados ao volante, conduzindo à chuva, e nem um poema impermeável para me abrigar...).

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

"Malaguenha", de Federico Garcia Lorca

A morte
entra e sai
da taberna.

Passam cavalos negros
e gente sinistra
pelos fundos caminhos
da guitarra.

E há um cheiro a sal
e a sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.

A morte
entre e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.

(in Poemas de Garcia Lorca; trad. Eugénio de Andrade)

domingo, 25 de janeiro de 2009

"Explicações científicas", de Gonçalo M. Tavares

Explicam cientificamente as decisões de um planeta,
porém não há laboratório capaz de estudar
a razão por que o homem se levanta
da cadeira quinze minutos depois
de ter bebido o seu café.
Descuidou-se a biblioteca: esqueceu acontecimentos mínimos.
Só há livros sobre reis e invasões, enormes discursos,
nem uma única página sobre as palavras
bom-dia, da peixeira ao jovem comprador.
Ninguém conhece um facto por dentro, ou uma acção,
como se conhece uma coisa.
Quem vem do nascimento vai para a morte,
são como dois lugares fixos,
cuja distância entre eles depende do acaso, quase sempre,
umas vezes da doença exterior,
raramente da decisão do homem triste
que se suicida.

(in 1)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

"Supernova", de Jorge Sousa Braga

Uma estrela quando morre
morre tão devagar
que não se lembra sequer
de que chegou a brilhar

Mas nem todas as estrelas
morrem dessa maneira
Há quem antes de morrer
brilhe pela vida inteira

(in Pó de Estrelas)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

(Dias sem poesia - um ano após o início)


Primeiro andamento (Adagio sostenuto) da "Sonata ao Luar", de Ludwig van Beethoven, interpretado por Wilhelm Kempff

domingo, 18 de janeiro de 2009

"O vento", de Jorge Sousa Braga

Por mais que tente, o vento
não consegue adormecer
se não tiver nada para ler.
Seja uma folha de tília,
de bambu ou buganvília.

É por isso que o vento
arrasta as folhas consigo,
até encontrar um abrigo,
onde possa adormecer.
- arrastou até a folha
onde eu estava a escrever!

(in Herbário)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

"Raízes", de Jorge Sousa Braga

Quem me dera ter raízes,
que me prendessem ao chão.
Que não me deixassem dar
um passo que fosse em vão.

Que me deixassem crescer
silencioso e erecto,
como um pinheiro de riga,
uma faia ou um abeto.

Quem me dera ter raízes,
raízes em vez de pés.
Como o lódão, o aloendro,
o ácer e o aloés.

Sentir a copa vergar,
quando passasse um tufão.
E ficar bem agarrado,
pelas raízes, ao chão.

(in Herbário)

"Pietà", de Miguel Torga

Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.
(in Poesia Completa, vol. I)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Um excerto mais de "O Medo (II)", de Al Berto

passei a manhã e parte da tarde a observar-me no espelho. procurava um indício de morte sobre o rosto.
que minuciosa imperceptível tarefa teria ela iniciado durante a noite? nada visível por agora. nada se vislumbra na cor da pele, no movimento das pálpebras ou no húmido dos lábios.
doem-me as mãos. um vómito sobe. sinto-me demasiado fraco para suportar o meu próprio peso. se ao menos a morte me prevenisse que chegaria. bastava que me mostrasse um vertiginoso buraco na água, um diáfano sorriso de pássaros ou uma pedra flutuando.
seria fácil, arrumaria com tempo os papéis escrevinhados, redigiria com pompa e gozo as últimas vontades, deitaria fora tudo o que possuo e sentar-me-ia à espera. mentalmente escreveria o derradeiro poema: vem com tua mortalha de água, ó treva...

(excerto de "O Medo (II)", in O Medo)

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

"Visita", de Miguel Torga

Fui ver o mar.
Homem de pólo a pólo, vou
De vez em quando olhá-lo, enraizar
Em água este Marão que sou.

Da penedia triste
Pus-me o olhar aquele fundo
Dentro do qual existe
O coração do mundo.

E vi, horas a fio,
A sua angústia ser
Uma espécie de rio
Que não sabe correr.

(in Poesia Completa, vol. I)

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

"Descrição de uma cidade", de Gonçalo M. Tavares

Não há lado esquerdo na metafísica,
O que não é uma limitação.
A produção industrial de problemas
Solta para o ar nuvens espessas
Que interferem no aeródromo.
Aviões cobertos de graffiti não conseguem levantar voo
Porque, entre os vários desenhos, os miúdos
Desenharam pedras de granito. A Ideia de granito
Pesa mais que a existência concreta de um
Balão, o mundo das ideias é estado transitório entre
O Nada e a montanha. Entretanto, a
Natação tornou-se importante para a cidade
Depois do dilúvio ocorrido há três mil anos. O governo
Oferece inscrições gratuitas e ainda casais de animais
Bruscos, mas mansos. Os homens andam felizes, e também
As mulheres, porque todos aprendem a nadar antes dos
Sessenta. Hoje, neste século, morre-se afogado mais tarde.
O mundo é perfeito de todos os lados,
Menos do lado onde estamos: como um sólido geométrico
Belo que cai em cheio na cabeça desprevenida.
O mundo é fantástico visto de cima, de helicóptero. A linguagem
Sobe e interfere em camadas específicas da atmosfera,
As palavras que usas não são inertes. O inglês, por exemplo,
É Língua que entra excessivamente nas nuvens. O inglês
Para a Astronomia é deselegante, e prejudica ligeiramente
As aves baixas.
No outro lado do mundo, entretanto, alguém, de grandes dimensões,
Enfia o aeródromo num saco de plástico. As pulsações
Da alma medem-se pelos pressentimentos, não por
Aparelhos medicinais. E não se ilumina a escuridão,
Ilumina-se algo que já não é escuridão; precisamente porque
A escuridão é escura, escuríssima segundo dizem.

(in 1)

(Café, não...)

(... carioca de limão...)

domingo, 11 de janeiro de 2009

"Bucólica", de Miguel Torga

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

(in Poesia Completa, vol. I)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

(Escassas leituras)

(Pouca poesia tem sido lida nos últimos dias pelo autor destas linhas. Há nesta afirmação, e na consciência do que ela significa, um certo remorso: os livros continuam, dia após dia, na mesma posição; os marcadores, pequenos pedaços de papel quase sempre rabiscados, na mesma página. O leitor anda ausente, ainda que novos livros apareçam sobre os velhos - mas aí ficam dias, sem que ninguém se interesse pelos seus segredos...)

domingo, 4 de janeiro de 2009

"As árvores e os livros", de Jorge Sousa Braga

As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.

E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.

As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».

É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.

(in Herbário)

(Os primeiros versos que se publicam neste novo ano provêm de um livro de poesia para crianças. São os versos que hoje me apetecem).