quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"Gaiola de Vidro", de Jorge de Sena

(Nas últimas páginas desse romance que Jorge de Sena não reviu nem concluiu, mas que, ainda assim, é uma obra com bastante interesse)

Como paredes através das quais
o mundo vemos pelo ser dos outros,
quem vamos conhecendo nos rodeia,
multiplicando as faces da gaiola
de que se tece em volta a nossa vida.

No espaço dentro (mas que não depende
do número de faces ou distância entre elas)
nós somos quem nós somos: só distintos
de cada um dos outros, para quem
apenas somos uma face em muitas,
pelo que em nós se torna, além do espaço
uma visão de espelhos transparentes.

Mas o que nos distingue não existe.

(in Sinais de Fogo)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

"A idade", de Carlos Nejar

Falou e disse um pássaro,
dois sóis, uma pequena estrela.
Falou para que calássemos
e disse amor, penúria, brevidade.
E disse disse disse
a idade da eternidade.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

"Celestial", de Álvaro Alves de Faria

Quando tentei ser santo,
queria apenas ser um santo
sem compromisso
de fazer milagres.

Seria uma espécie de santo avulso,
desses que permanecem
desconhecidos no céu
e que só vêem Deus
de muito longe,
sem direito a carro oficial.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)

"A Ricardo Reis, no Mar da Galiléia", de Alberto da Costa e Silva

Só dizem os deuses o que logo esquecem,
mas o jogo do céu é amplo e reto,
e cada lance é um coração aberto:

nele não dorme o que se fez desperto,
o eterno é agora e em si mesmo morre,
nunca houve rumo e todo sempre é incerto.

- Não creio, e rezo.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Soneto XXXIII, dos "35 Sonnets", de Fernando Pessoa

He that goes back does, since he goes, advance,
Though he doth not advance who goeth back,
And he that seeks, though he on nothing chance,
May still by words be said to find a lack.
This paradox of having, that is nought
In the world's meaning of the things it screens,
Is yet true of the substance of pure thought
And there means something by the nought it means.
For thinking nought does on nought being confer,
As giving not is acting not to give,
And, to the same unbribed true thought, to err
Is to find truth, though by its negative.
So why call this world false, if false to be
Be to be aught, and being aught Being to be?

* * *

Quem para trás vai, só por isso avança,
Inda que não avance recuando,
E quem procura, o nada encontrando,
Dele se dirá que o vazio alcança.

Este nada é paradoxo do ter
No sentido em que o mundo o vem velar,
É a vera essência do puro pensar
E algo diz pelo nada dizer.

Se o não dar é o acto de não o dar,
E pensar o nada é reconhecê-lo,
Segundo o mesmo pensamento, errar

É descobrir verdade, não a tendo.
Porquê chamar falso o mundo se, por sê-lo,
É já algo do Ser, por isso sendo?

(in Poesia Inglesa, vol I; Assírio & Alvim, trad. Luísa Freire)

domingo, 4 de novembro de 2012

(Objetos [utópicos] de desejo)

(E além destes três exemplos - os Diários, de Al Berto, Nenhum caminho será longo. Para uma teologia da amizade, de José Tolentino Mendonça, e A Civilização do Espetáculo, de Mário Vargas Llosa -, ainda vimos por aí (e desejamos, infelizmente sem a possibilidade de os trazer para casa) a poesia reunida de Vasco Graça Moura (dois volumes), de Maria do Rosário Pedreira (com inéditos) e de João Luís Barreto Guimarães. Houvesse possibilidade, trataria de arranjar um bom lugar para os acolher e o tempo necessário para os desfrutar...)

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

"Café do Molhe", de Manuel António Pina

Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.

(in Ao Porto. Colectânea de Poesia sobre o Porto; ed. Dom Quixote, 2001)