sexta-feira, 30 de março de 2012

Outro poema de Francisco José Viegas

Os amigos vêm uma vez ou outra e sentam-se,
mostram-te como são dóceis ou difíceis, ou
como a morte se impede, por eles, de chegar
até ti. São uma barreira contra a morte,

os amigos, acaricias vagamente o seu rosto
ou a sua memória, as palavras não servem
para isso. Por eles vem a geometria do mundo,
neles se perde depois, nem que seja para sempre.

Vê como eles chegam e trazem vinho, tabaco,
vergonha, cartas antigas, recortes de jornais,
músicas que ouvimos antes. Depois sentam-se

chamam-te para o meio deles, emprestam-te
uma palavra ou outra, caminham com vagar,
riem, trazem coisas que esqueces por toda a casa.

(in O Puro e o Impuro; ed. Quase, 2003)

quinta-feira, 29 de março de 2012

Poema de Francisco José Viegas

Essa velha ciência, a de esperar, escreve-la
em cadernos retirados a cada viagem. Neles
anotaste os movimentos do mundo, o balanço
do mar. São só velhos, os cadernos; ainda

escreves à mão, ainda respiras por ele,
ciência antiga - onde a conservas? Linha
a linha as viagens vão passando por eles como
um mapa: aqui as ilhas, ali pequenos continentes,

provas de que o mundo não acaba à tua porta
quando o jardim desaparece entre os granitos.
Levantas a voz uma vez por outra, mas não é

isso que te interessa. Gostavas apenas que
os cadernos ficassem, gravados de ti e de quem amas,
guardados em gavetas, guardando o mundo.

(in O Puro e o Impuro; ed. Quasi, 2003)

quarta-feira, 28 de março de 2012

"Loa ao Porto", de António Manuel Couto Viana

Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
O corpo amuralhado de granito,
Cabelo d'água, à névoa, ao vento, exposto,
Face esculpida em grito.

Braços de ferro, arqueados, desmedidos,
Sobre o fluir dos barcos e do barro.
E um rumor antigo
Na voz das tuas ruas e mercados.

Vestes de escuro e enfeitas-te de luzes
Antes do Sol perder seu oiro pálido.
E das torres com sinos e com cruzes
acenas ao mar largo.

Bulícios de cafés (há mais de mil)
Entornam-te nas veias graça e fogo.
E o lírico torpor dos teus jardins
Suspiros e repouso.

Que impulso de dizer-te pátria, Porto:
Coração não de Pedro, mas de pedra
Com sangue fértil, vinho generoso
A gerar alma e terra.

(in Ao Porto. Colectânea de Poesia sobre o Porto; ed. Dom Quixote, 2001)

segunda-feira, 26 de março de 2012

"Estou aqui", de Eugénio de Andrade

Estou aqui sentado - ali o mar,
as palmeiras.
O leite fresco, o pão na mesa.
O gesto sempre igual
da luz, o mesmo olhar da ave.
Existe uma secreta harmonia
entre a luz e o mar,
a mesma provavelmente
entre a palmeira e a ave,
o leite e o pão.
E com a palavra, o seu
voo a prumo,
com a palavra qual é a relação?

(in Ao Porto. Colectânea de Poesia sobre o Porto; ed. Dom Quixote, 2001)

quarta-feira, 21 de março de 2012

(Uma recomendação para o Dia Mundial da Poesia)


(Tal como nos anos anteriores, o poemapossivel recomenda a antologia poética "Resumo - a poesia 2011", organizada por Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas).

"Dia", de Sophia de Mello Breyner Andresen

Como um oásis branco era o meu dia
Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia.

(in No Tempo Dividido; ed. Caminho)

segunda-feira, 19 de março de 2012

"Tarde", de Sophia de Mello Breyner Andresen

O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas

(in No Tempo Dividido; ed. Caminho)

domingo, 18 de março de 2012

Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen



Não procures verdade no que sabes
Nem destino procures nos teus gestos
Tudo quanto acontece é solitário
Fora de saber fora das leis
Dentro de um ritmo cego inumerável
Onde nunca foi dito nenhum nome
(in No Tempo Dividido; ed. Caminho)