sábado, 30 de abril de 2011

"Dos pássaros", de Carlos Lopes Pires

Anda comigo ver os pássaros que vão pelas tardes
a conquistar o ar. Não trabalham nem fazem eiras
para descansar o outono ou arrefecer as chuvas.
Mas têm um certo saber quase perfeito,
quase nada,

e tão silêncio.

(in A fuga das cidades. Os ensinamentos)

sexta-feira, 29 de abril de 2011

"Seios e anseios", de Mia Couto

As vezes que morri
boca derramada entre os teus seios,
todas essas vezes
não me deram luto
porque, de mim, eu em ti nascia.

Todos esses abismos,
meu amor,
não me deram regresso.

Depois de ti,
não há caminhos.

Porque eu nasci
antes de haver vida,
depois de tu chegares.

(in Tradutor de Chuvas)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

"Cores de parto", de Mia Couto

(O título do novo livro de Mia Couto apropria-se ao dia de hoje)


O que eu vi,
à nascença, foi o céu.

No rasgão da retina,
a desatada luz: o meu segundo oceano.

Aprendi a ser cego
antes de, em linha e cor,
o mundo se revelar.

O que depois vi,
ainda sem saber que via,
foram as mãos.

Parteiros gestos
me ensinaram quanto,
das mãos,
a vida inteira vamos nascendo.

As mãos foram,
assim, o meu segundo ventre.

Luz e mãos
moldaram a impossível fronteira
entre oceano e ventre.

Luz e mãos
me consolaram
da incurável solidão de ter nascido.

(in Tradutor de Chuvas)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

"Dos avisos", de Carlos Lopes Pires

Cansaram-se de avisar e, um dia,
inesperadamente,
os poetas fugiram. Sabemos agora
que os poetas não se fecham nem prendem.
Matámos alguns e ficámos com os seus olhos grandes
a olhar sérios para nós. Mas os poetas nunca morrem,
pois fica sempre uma palavra ou outra
solta pelo chão a sangrar.

(in A fuga das cidades. Os ensinamentos)

terça-feira, 19 de abril de 2011

"Dos sinais", de Carlos Lopes Pires

(Poema lido e publicado em Tomar; a AJ lendo um livro aqui ao lado)

Expulsaram os pássaros da nossa rua.
Primeiro trouxeram máquinas escavadoras
e nuvens de pó,
depois chegaram carros bem vestidos
de onde saíam homens com papéis
e mãos vazias.
De uma ponta à outra da rua
serraram as árvores
que nos indicavam as sucessivas estações
dos nossos dias.
Como reconheceremos agora o outono?
Como saberemos da chegada dos sinais
se já nem os pássaros têm ramos

onde pousar as canções?

(in A fuga das cidades. Os ensinamentos)

sábado, 16 de abril de 2011

"Pequenos trabalhos de domingo", de Miguel-Manso

não saio antes
que tudo esteja pronto

a loiça a escorrer na cozinha
o aspirador cheio
a varanda lavada pelo dia
o rádio em off

nessa hora em que
a noite se aproxima devagar
do meu rosto
escrevo poema nenhum
falta-me língua

sento-me num banco do jardim
mais próximo
onde (que perfeição)

nada acontece

(in Resumo - a poesia em 2010)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

"Janela", de Miguel-Manso

dedico-me ao poema como um
homem velho se dedica a um vaso
com flores

(in Resumo - a poesia em 2010)

quarta-feira, 13 de abril de 2011

(Dias sem poesia)


Marc Ribot interpreta "Happiness is a Warm Gun", dos Beatles (ao vivo em Copenhaga, Abril de 2011)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

domingo, 3 de abril de 2011

"Com unhas e dentes", de Luís Filipe Parrado

Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.

(in Resumo - a poesia em 2010)