terça-feira, 31 de março de 2009

"Noite de Primavera", de Zhang Kejiu

No pátio do baloiço uma lua pálida raras estrelas
uma nuvem melancólica, a tristeza da chuva no rosto dum hibisco
a andorinha aflita, atei à sua pata um fio de seda vermelha
uma sombra desesperada no espelho de bronze, o leque redondo [abandonado
do fogão com boca de animal evola-se o fumo da madeira de sândalo
na baía de esmeralda restos de flores
uma a uma, anotei estas coisas no florilégio dos meus pensamentos [amorosos

(in Cinquenta "Xiaoling"; trad. Albano Martins)

sexta-feira, 27 de março de 2009

(Dia Mundial do Teatro - um fragmento de Shakespeare)

Julieta:
Dei-te o meu voto antes que mo pedisses.
Mas ai, quem me dera que o pudesse voltar a dar.

Romeu:
Eras capaz de retirá-lo? Com que propósito, amor?

Julieta:
Para ser generosa, e poder dar-to mais uma vez.

(in Romeu e Julieta)

"Duas lições", de João Melo

I

Todos os materiais servem ao poeta:
o som de um tambor,
a angústia de uma mulher nua,
a lembrança de uma utopia.

A vida deposita, diariamente,
no altar profano da poesia,
a sua dádiva generosa:
estrelas e detritos.

E tudo a poesia sacrifica.

II

Para amar um poema,
é preciso ter coração e
sangue nas veias.

E que o poema seja uma carícia
ou um soco na boca do estômago.

(in Auto-Retrato)

quarta-feira, 25 de março de 2009

"Para vivenciar nadas", de Ondjaki

borboleta é um ser irrequieto.
para vestes usa pólen.
tem um cheiro colorido
e babas de amizade.
descola por ventos
e facilmente aterriza em sonhos.
borboleta tem correspondência directa
com a palavra alma.
para existir usa liberdades.
desconhece o som da tristeza
embora saiba afogá-la.
usa com afinidades
o palco da natureza.
nega maquilhagens isentas
de materiais cósmicos. como digo:
pó-de-lua, lápis solar
castanho-raiz, cinzento-nuvem.
borboleta dispõe de intimidades
com arcos íris
a ponto de cócegas mútuas.
para beijar amigos e vidas ela usa olhos.
borboleta é um ser
de misteriosos nadas.

(in Há Prendisajens com o Xão)

terça-feira, 24 de março de 2009

"Para pisar um chão com estrelas", de Ondjaki

(De novo, um poema com estrelas. Pura coincidência. O anterior, de Pessoa, repousava no meu caderno há pelo menos dois meses - reli-o, quase por acaso, e reencontrei-me com a sua beleza; o que agora se publica, resulta de uma leitura feita minutos antes de partir do lugar - deste xão - onde me encontro... mas não para pisar um chão com estrelas).

imitando-me ao morcego
intimidei o dia a ser mais vertical.
assim o céu ganhou pés
a terra experimentou alturas.
apressas, pedi:
uma noite se antecipasse.
transfigurando conceitos
o palco do mundo vincava-se
de novas encenações.
estrelas chegaram.
lua teve dúvidas para posicionar-se.
encaminhando
andei sobre o céu sob meus pés.
assim revelei-me:
nunca é impossível
pisar um chão de estrelas.
...
logo-logo:
um grilo atirou-se a sorrisos.

(in Há Prendisajens com o Xão)

Uns quantos versos de Pessoa

São velhas as estrelas, e elas são
Grandes. Velho e pequeno é o coração,
E contém mais do que as estrelas todas,
Sendo, sem espaço, mais que a imensidão.

(in Poesia 1934-1935 e não datada)

sábado, 21 de março de 2009

Comemorar o Dia Mundial da Poesia... com um poema de Eucanaã Ferraz


O poeta insiste:
brune, lava, escoda.

Mas já não sonha
o perfeito.

Verruma
porque o canto é isso mesmo.

Isso:
toda a palavra é defeito.

(in Desassombro)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Outra quadra de Umar-i Khayyām

Quando deitarmos o último suspiro,
Colocarão tijolos na campa das nossas cinzas.
Das nossas cinzas moldarão tijolos
Para cobrir as campas daqueles que virão depois.

(in Rubā'Iyat)

terça-feira, 17 de março de 2009

"O poema", de José Tolentino Mendonça

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.

(in A Noite Abre Meus Olhos)

segunda-feira, 16 de março de 2009

Quadra do poeta persa Umar-i Khayyām

Uma taça do vinho novo é sempre desejada,
Os sons da flauta suaves ouviria sem cansaço.
Quando o oleiro transformar as minhas cinzas numa jarra
Que esteja sempre cheia com o vinho!

(in Rubā'Iyat)

Ainda um poema do «Livro das Quedas», de Casimiro de Brito

Se o mundo não tivesse palavras
a palavra do mar, com toda a sua paixão,
bastava. Não lhe falta
nada: nem o enigma nem
a obsessão. Entregue ao seu ofício
de grande hospitaleiro
o mar é um animal que se refaz
em cada momento.
O amor também. Um mar
de poucas palavras.

(in Livro das Quedas)

quinta-feira, 12 de março de 2009

Os dois primeiros versos de um poema de Casimiro de Brito

Se dizem que parti, não é verdade;
se dizem que se morre, acabo de chegar.
(...)

(in Livro das Quedas)

"A estrada branca", de José Tolentino Mendonça

Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

(in A Noite Abre Meus Olhos)

terça-feira, 10 de março de 2009

segunda-feira, 9 de março de 2009

Mais versos de Casimiro de Brito

(Hoje que faz sol, deliciou-me este poema de chuva... Reparo agora que o poema publicado anteriormente, há poucas horas apenas, também fala de chuva...).

A chuva pede que me cale
ou convida-me a cantar? Ainda
não entendi, vou escutar
com mais atenção, vou encostar
ao búzio delicado da chuva
o ouvido poluído
do coração.

(in Livro das Quedas)

Versos de Gérard de Cortanze

E se a chuva existisse
apenas no olhar
que tu me diriges?
A água, assim, viria
da alma. Mas o olhar
provém da chuva. Porque
sem a chuva - sem a consciência
dela, através dos olhos -,
o olhar não existe.
Assim, o olhar detém
um pouco de chuva,
na sua água: as
lágrimas - talvez?
Ou o mar. Ou a terra
quando a chuva a
devolve húmida ao olhar.

(in O Movimento das Coisas, trad. Isabel Aguiar Barcelos)

domingo, 8 de março de 2009

terça-feira, 3 de março de 2009

"Velharias", de Nuno Júdice

Às vezes, eu subia as escadas para o sótão; e
parava sempre nas caixas que iam ocupando
os degraus, para ver o que tinham lá dentro.
Por entre rendas de bilros, velhas canetas,
discos de 75 rotações, caixas de costura,
havia também postais e cartas, assinadas
por gente de que nunca ouvira falar, com
mensagens banais, de parabéns por esque-
cidos aniversários, ou anunciando idas
para férias num tempo de termas e
casinos. Do meio dessas cartas, por vezes,
também caíam nós de cabelos ou
palavras mais ternas. Os diminutivos
substituíam os nomes; e formas de trata-
mento que deviam ter ficado guardadas
nos ouvidos de quem se ama ouviam-se,
de súbito, como se o tempo não tivesse
passado, sepultando num fundo de memória
quem assim escreveu. Então, procurava ler
nas entrelinhas; e tocava a caligrafia perfeita
com que a carta começava, sentindo a
aspereza da tinta, até chegar a meio da
página onde a letra se fazia trémula, e o desejo
saltava de dentro do papel. Quando fechava
a caixa, com os seus segredos arrumados,
já não subia o resto das escadas: que sombras
me esperavam naquele sótão? Que mãos
gastas pela solidão me iriam puxar para
cima, de onde quem entrou não volta a descer?

(in Geometria Variável)

segunda-feira, 2 de março de 2009

(O pó do poema)

(Transcrevo um poema: despendo, a meio do dia, cerca de vinte minutos nessa tarefa inútil. Cada verso, ou palavra, ou sílaba, ou letra, pouco mais significam que pequenas partículas de tempo - intangível pó que fixo em páginas levemente amarelas com a minha letra. O buzinar dos automóveis é o ponto final do que transcrevo; pergunto-me: em que tarefas, seguramente mais úteis, despendem os apressados condutores o pó das suas vidas?).