terça-feira, 30 de dezembro de 2008

"Chaucer", de Ted Hughes

«Quando Abril com suaves aguaceiros
sacia a sede de Março até às raízes...»
Com a tua voz no seu tom mais elevado, balançando no cimo de um [escadote,
braços erguidos - para te equilibrares e
segurares as rédeas da esforçada atenção
daquela tua audiência imaginária - declamaste Chaucer
para um campo com vacas. E o céu da Primavera fez o resto,
com a roupa lavada a esvoaçar, o verde-esmeralda
dos espinheiros, o espinheiro branco, o espinheiro negro,
tu com um daqueles copos de champanhe
a que tinhas deitado a mão na arrebatação do momento.
A tua voz voou pelos campos até Grantchester.
Deve ter soado a perdida. Mas as vacas
olharam, e aproximaram-se logo: elas apreciavam Chaucer.
E tu continuaste. Havia razões
para recitar Chaucer. Seguiu-se uma divertida Mulher de Bath,
a tua personagem favorita de toda a literatura.
Estavas arrebatada. E as vacas fascinadas.
Empurravam-se e roçavam-se, faziam um círculo
para contemplar o teu rosto, dando alguns bramidos ocasionais
de exclamação, para avivar a sua assombrosa capacidade de [atenção,
de ouvidos à escuta para apanhar todas as inflexões,
à respeitosa distância de dois metros.
Tu simplesmente não conseguias acreditar.
E também não consegues parar. Que podia acontecer
se resolvesses parar? Seriam capazes de te atacar,
assustadas com o choque do silêncio, ou só porque queriam mais? -
E por isso tiveste de continuar. E continuaste -
vinte vacas ficaram contigo, hipnotizadas.
Como é que conseguiste parar? Não me lembro
de teres parado. Imagino que se foram embora cambaleando -
a revirar os olhos, como que atraídas pelo cheiro da erva.
Imagino que as devo ter enxotado. Mas
a tua interpretação de Chaucer em sustenido
já era eterna. Aquilo que se seguiu
encontrou a minha atenção demasiado ocupada
e teve de regressar ao esquecimento.

(in Cartas de Aniversário; trad. Manuel Dias)

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