Estava eu numa noite com uma atroz judia,
Como ao pé de um cadáver um outro estendido,
E então pus-me a pensar, junto ao corpo vendido,
Nessa triste beleza de que eu prescindia.
E logo lhe evoquei a inata majestade,
A graça do olhar tão cheio de vigor,
Os cabelos, parecendo um elmo perfumado,
Cuja recordação me desperta o amor.
Pois com fervor teria beijado o teu corpo
Desde os viçosos pés até às tranças negras,
Pra te mostrar o cofre das maiores carícias,
Se uma noite num choro espontâneo, sem esforço,
Ó rainha cruel! conseguisses ao menos
Turvar o resplendor dessas frias pupilas.
(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)