sexta-feira, 28 de junho de 2013

[There was crimson clash of war], de Stephen Crane

There was crimson clash of war.
Lands turned black and bare;
Women wept;
Babes ran, wondering.
There came one who understood not these things.
He said, "Why is this?"
Whereupon a million strove to answer him.
There was such intricate clamour of tongues,
That still the reason was not.

* * *

Havia um choque rubro de guerra.
As terras ficavam negras e áridas;
As mulheres choravam;
As crianças corriam, em espanto.
Chegou um que não compreendia estas coisas.
Disse ele, "Que razão há para isto?"
Ao dizer isto, um milhão esforçou-se por lhe dar resposta.
Foi tamanho o intrincado clamor das línguas,
Que a razão ficou por se saber.

 (in O Sapo no Horizonte. Poemas de Stephen Crane; trad. Hélio Osvaldo Alves; ed. tradutor, 1999)

quinta-feira, 27 de junho de 2013

("A poesia é uma das coisas que ainda não conseguiram tirar-nos", J.H.)

 Fotografia de Mário Vitória (www.mariovitoria.com), responsável pela gravura da capa e ilustrações interiores do livro

(O poemapossivel agradece ao poeta João Habitualmente a sua gentileza. Lidos ao acaso alguns versos, ainda que de forma algo leviana, a minha curiosidade foi despertada - uma leitura, portanto, para muito breve.)

[já não tenho mão com que escreva nem lâmpada], de Herberto Helder

já não tenho mão com que escreva nem lâmpada,
pois se me fundiu a alma,
já nada em mim sabe quanto não sei
da noite atrás da luz: livros, frutas na mesa, o relógio
                                                           que mede
minha turva eternidade
e o tempo da terra monstruosa,
já nada tenho com que morrer depressa,
excepto
tanta hora somada a nada:
acautela a tua dor que se não torne académica

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quarta-feira, 26 de junho de 2013

[Quero ignorado, e calmo], de Ricardo Reis

Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.

Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.

Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada spera
Tudo que vem é grato.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 25 de junho de 2013

[Eu amo agora], de Casimiro de Brito


Eu amo agora
eu amo a linguagem eu amo
a boca materna
mas o que eu mais amo
é o caos a nudez
o corpo original o
animal que devora
o outro animal
que se deixa comer
pelo seu desigual

Amo a língua
porque só ela
a língua de carne
a carne incendiada
pode inventar
o canto e a voz
da fonte muda

(in Amo Agora; ed. 4águas, 2009)

[um dia destes tenho o dia inteiro para morrer], de Herberto Helder

um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,
espero que não me doa,
um dia destes em todas as partes do corpo,
onde por enquanto ninguém sabe de que maneira,
um dia inteiro para morrer completamente,
quando a fruta com seus muitos vagares amadura,
o dom – que é um toque fundo na ferida da inteligência:
oh será que um poema entre todos pode ser absoluto?
:escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas
                                                                         linhas

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quinta-feira, 20 de junho de 2013

[Yes, I have a thousand tongues], de Stephen Crane

Yes, I have a thousand tongues,
And nine and ninety-nine lie.
Though I strive to use the one,
It will make no melody at my will,
But is dead in my mouth.

* * *

É verdade, tenho mil línguas,
E destas, novecentas e noventa e nove mentem.
Embora me esforce por usar aquela única,
À minha vontade não canta melodias,
Pois está-me morta dentro da boca.

(in O Sapo no Horizonte. Poemas de Stephen Crane; trad. Hélio Osvaldo Alves; ed. tradutor, 1999)

terça-feira, 18 de junho de 2013

[não me amputaram as pernas nem condenaram à fôrca], de Herberto Helder

não me amputaram as pernas nem condenaram à fôrca,
não disseram de mim:
ele inventou a rosa,
contudo quando acordei a minha mão estava em brasa,
contudo escrevi o poema cada vez mais curto para chegar
                                                           mais depressa,
escrevi-o tão directo que não fosse entendido,
nem em baixo,
nem em cima,
nem no sítio do umbigo que se liga ao sangue impuro,
nem no sítio da boca onde se nomeia o sopro,
e ficou assim:
económico, íntimo, anónimo
ou:
chaga das unhas cravadas na carne irreparável

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

segunda-feira, 17 de junho de 2013

[como se atira o dardo com o corpo todo], de Herberto Helder

como se atira o dardo com o corpo todo,
com a eternidade em não mais que nada,
e depois a abolição do tempo,
e então o que respira no corpo passa à vara,
e o que respira na vara passa depois à ponta,
tu não, tu já respiraste tudo pelo dardo fora,
mudo e cego e surdo,
e és um só ponto do alvo onde respiras todo,
e tudo respira nesse ponto,
em ti, veia da terra, oh
sangue sensível

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 14 de junho de 2013

O primeiro poema do novo livro de Herberto Helder

dos trabalhos do mundo corrompida
que servidões carrega a minha vida

(in Servidões; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Dois poemas de Ricardo Reis, no dia do 125º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa


Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
        Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
        De penas.

* * *

Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 11 de junho de 2013

"A identidade dos contrários", de Edouard Roditi

Sonho que sou louco, e na minha loucura
Sou mais sensato que num sonho
Ou acordado, com medo que me tenham por louco
Meus companheiros de sonho.

Meu bom senso é diária loucura,
Para um mundo em vigília que atribui
Mais vigília e atenção mais funda
À razão do que a razão possui.

Sonho é minha vida diária, cada dia
Simula e dissimula até loucura
E razão serem ambas semelhantes,
E eu ajo enquanto sonho.

No sonho, o bom senso e a loucura,
Na loucura, o sonho e o dia a dia
Ligados, entre si todos semelhantes:
Sonhando ou acordado, sou louco e sou sensato.

(in As magias; poema mudado para português por Herberto Helder; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 10 de junho de 2013

"O Coração", de Stephen Crane

No deserto,
vi uma criatura nua, brutal,
que de cócoras na terra
tinha o seu próprio coração
nas mãos e comia...
Disse-lhe: «É bom, amigo?»
«É amargo - respondeu -,
amargo, mas gosto
porque é amargo
e porque é o meu coração».

(in As magias; poema mudado para português por Herberto Helder; ed. Assírio & Alvim)

domingo, 9 de junho de 2013

[O que sentimos, não o que é sentido], de Ricardo Reis

O que sentimos, não o que é sentido,
É o que temos. Claro, o inverno estreita.
        Como à sorte o acolhamos.
Haja inverno na terra, não na mente.
E, amor a amor, ou livro a livro, amemos
        Nossa lareira breve.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

quinta-feira, 6 de junho de 2013

[No mundo, só comigo, me deixaram], de Ricardo Reis

No mundo, só comigo, me deixaram
        Os Deuses que dispõem.
Não posso contra eles: o que deram
        Aceito sem mais nada.
Assim o trigo baixa ao vento, e, quando
        O vento cessa, ergue-se.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

quarta-feira, 5 de junho de 2013

"Valsa Fúnebre para Hermengarda", de Lêdo Ivo

Eis-me aqui junto da tua sepultura,
Hermengarda,
para chorar a carne pobre e pura
que nenhum de nós viu apodrecer.

Outros viriam lúcidos e enlutados,
e no entanto eu venho embriagado,
Hermengarda, eu venho embriagado.
E se pela manhã encontrarem a cruz
do teu túmulo derrubada no solo
não foi a noite, Hermengarda,
nem foi o vento.
Fui eu.

Quis amparar a minha embriaguez na tua cruz
e rolei pela terra em que repousas
coberta de margaridas e contudo triste.

Eis-me aqui junto da tua sepultura,
Hermengarda,
para chorar o nosso amor de sempre.

Não é a noite, Hermengarda,
nem é o vento.
Sou eu.

(in Fernando Savater, A Vida Eterna, ed. Dom Quixote, 2008)

terça-feira, 4 de junho de 2013

Poema do povo Dinca (Sudão), mudado para português por Herberto Helder

 à memória do meu avô

No tempo em que Deus criou todas as coisas,
criou o sol,
e o sol nasce, e morre, e volta a nascer;
criou a lua,
e a lua nasce, e morre, e volta a nascer;
criou as estrelas,
e as estrelas nascem, e morrem, e voltam a nascer;
criou o homem,
e o homem nasce, e morre, e não volta a nascer.

(in As magias; poema mudado para português por Herberto Helder; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 3 de junho de 2013

[o que não tenho tenho], de Pedro Tamen

o que não tenho tenho
a escuridão é luz
donde não chego venho
o que rasga seduz

tudo é páscoa de morte
tudo é páscoa de vida
tudo é fraco e é forte
a entrada é saída

tudo é contradição
de medo e destemor
tudo me é coração
meu amor meu amor

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

(A poesia é um vício caro - reprise)

(Um novo livro de Herberto Helder é indubitavelmente um acontecimento. A sua obra tem um papel de destaque na poesia portuguesa contemporânea, em parte - na minha modesta opinião - pela elevação e quase sacralização da poesia.
O poeta, com os seus 82 anos, tem publicado muito espaçadamente as suas últimas obras poéticas, impondo, a quem o publica, uma edição única com, por consequência, um número limitado de exemplares. Em 2008, com A Faca Não Corta o Fogo, os três mil exemplares impressos - sendo que em Portugal são raríssimas as edições de poesia a atingir o milhar - esgotaram em cerca de um mês (na altura falou-se que parte dos exemplares havia sido açambarcada por uns quantos alfarrabistas, em vista de maiores ganhos); este seu novo livro, Servidões, seguindo o mesmo modelo, foi anunciado em cima da data de lançamento e, numa pouco inocente e nada dissimulada estratégia de marketing, publicitado como passível de esgotar rapidamente - o que parece, de facto, destinado a acontecer.
Entretanto já pude ler na imprensa vários textos (noticias mas também recensões), e todos parecem passar ao lado de um aspeto - o preço (talvez por ser pouco literário falar destas coisas). O livro, com cerca de 130 páginas, custa vinte e dois euros. É certo que quase todos os livros de poesia são caros - comparados com os de outros géneros literários (frequentemente, livros de sessenta ou setenta páginas aparecem nas livrarias a dez euros) -, mas tenho que referir que o preço me parece algo exagerado. E aqui parece haver uma contradição (resta saber se com a conivência declarada do autor, ou somente com a sua tolerância ou indiferença), entre a pureza poética da escrita do autor e o caráter excessivamente mercantil (esta parcela da obra transforma-se num livro gritantemente preso à condição de produto, peça a ser vendida em busca do máximo lucro e/ou por vezes comprada como investimento a rentabilizar).
Seguramente que o livro não chegará a muitos dos potenciais leitores de Herberto Helder (talvez seja essa a sua vontade), muitos deles provavelmente com um interesse genuíno, sincero e - se se quiser - puro. O livro, que procurarei ler, poderá ser eventualmente estruturante no conjunto da obra, mas a contradição entre poesia e lucro mancha um pouco o acontecimento).