segunda-feira, 25 de março de 2013

Poema de Adília Lopes

Se tu amas por causa da beleza, então não me ames!
Ama o Sol que tem cabelos doirados!
Se tu amas por causa da juventude, então não me ames!
Ama a Primavera que fica nova todos os anos!
Se tu amas por causa dos tesouros, então não me ames!
Ama a Mulher do Mar: ela tem muitas pérolas claras!
Se tu amas por causa da inteligência, então não me ames!
Ama Isaac Newton: ele escreveu os
Princípios Matemáticos da Filosofia Natural!
Mas se tu amas por causa do amor, então sim, ama-me!
Ama-me sempre: amo-te para sempre!

(in José Tolentino Mendonça, Nenhum Caminho será Longo. Para uma teologia da amizade; ed. Paulinas, 2012)

sexta-feira, 15 de março de 2013

"Bicicleta para o infinito", de João Luís Barreto Guimarães

Ao
assentir os 40 subi a uma bicicleta das que
pedalo
pedalo
não saio do mesmo sítio. Já me disseram:
assim falho a experiência real (o
vento frio na face
o marulhar magnífico) mas
pedalando à janela sobre a marginal de Leça
gosto de os ver errar atrás de logros distintos
(um fato de treino rosa
a juventude perdida) cá de cima eu
pedalo atrás deste manuscrito
(escrevo
rasuro
reparo:) a meus pés
outro infinito.

(in você está aqui; ed. Quetzal, 2012)

quarta-feira, 13 de março de 2013

Excerto de poema sem título, de Al Berto

Estou gasto. dei-me
sempre mais do que podia.
Já não há mais nada que me possam
roubar. Sou um corpo espoliado
de todos os bens, de todas as doenças,
de todas as sensações. Sou um
corpo pronto para a morte. por
isso ela não vem. assim o indica
a imensa linha da vida.
sou um corpo que se evita, um
homem cujo nome se perdeu, e cuja
biografia possível está no que, bem ou
mal, conseguiu escrever. sou
um corpo sem nacionalidade, pertenço
às profundidades do mar, à imensi-
dão dos oceanos, ao voo da ave que
há pouco me pousou na mão. sou um
alfabeto e não sei se terei tempo
suficiente para me decifrar.

(excerto de "Diário 1985", in Diários; ed. Assírio & Alvim, 2012)

domingo, 10 de março de 2013

"Poeta marca território", de João Luís Barreto Guimarães

Porque anoiteço cansado (caneta-
-do-não em riste) risco
o linho da cama e tu ficas agastada.
Não consigo dominá-la:
a caneta queda à espreita de ser
liberta pelo sono
(muito mais flecha
que pena). Newton perdoar-me-ia:
estes traços tresmalhados (na
tessitura do leito) não passam de ortografia
que madurou
do poema.

(in você está aqui; ed. Quetzal, 2012)

quinta-feira, 7 de março de 2013

"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio", de Ricardo Reis

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
       (Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
       Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
       E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
       E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e caricias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
       Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
       Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
       Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
       Pagã triste e com flores no regaço.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 4 de março de 2013

"Meditação em Váci Utca", de João Luís Barreto Guimarães

A tarde: passei-a a assistir à guerra
pela televisão. Nenhum dos nossos está em falta
enquanto nesses lugares se contam
desaparecidos. Ninguém
da nossa geração esteve na revolução. Outros
(antes de nós)
fizeram as nossas guerras (quando
chegámos aos dias já a guerra havia sido
chegámos para lutar tinha
o ditador caído). Para nós só sobejou outra
sorte de batalhas (levantar cada manhã o
peso imenso das pálpebras)
correr por um lugar na trincheira
do balcão.
A tarde inteira assisti à guerra
pela televisão (deste lado do ecrã não se
passa frio
ou fome). Sirvo-me um copo de vinho num
gesto despreocupado enquanto assisto em directo
ao estrear de outra batalha. É terrível
quando cai a cor do vinho tinto
no branco puro
da toalha.

(in você está aqui; ed. Quetzal, 2012)

sexta-feira, 1 de março de 2013

"Mestre, são plácidas", de Ricardo Reis

Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O Tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quasi
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)