sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Cantiga de amigo, de D. Dinis

Quem trist'hoj'é meu amigo,
amiga, no seu coraçom,
ca nom pôde falar migo
nem veer-m', e faz gram razom
meu amigo de trist'andar,
por m'el nom ver e lh'eu nembrar.

Trist'anda, se Deus mi valha,
ca nom me viu, e dereit'é;
e por esto faz sem falha
mui gram razom, per bõa fé,
meu amigo de trist'andar,
por m'el nom ver e lh'eu nembrar.

D'andar triste faz guisado,
ca o nom vi, nem viu el mi,
nem ar oíu meu mandado;
e por em faz gram dereit'i
meu amigo de trist'andar,
por m'el nom ver e lh'eu nembrar.

Mais, Deus, como pode durar,
que já nom morreu com pesar?

v.1 que triste está hoje; v. 4 "e faz gram razom": e tem razão; v. 6 "nembrar": lembrar; v. 8 "e dereit'é": e é justo; vv. 13-16 é próprio que ande triste / porque não o vi, nem ele me viu a mim / nem além disso ouviu o meu recado; / e por isso procede muito bem.

(in Cancioneiro; ed. Teorema, 1997, notas de Núno Júdice)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

"Vã procura", de Péricles Prade

Em vão procurei a Tabacaria
do Esteves sem metafísica.
Queria, como Álvaro de Campos, dizer-lhe adeus.
Por toda a parte procurei
a Tabacaria & seu dono
olhando tabuletas diurnas e noturnas
em várias direções.
Mas nas tabacarias de hoje
(nas que entrei ou vi de relance)
não há Esteves, ainda que defronte
haja metafísica de todo gênero, sor-
risos, máscaras mouras, jogadores
de dominó, trovadores convencidos, fumadores,
marqueses, mendigos, lagartos decadentes,
línguas, temores, Amálias,
pombas, mistérios e contradições.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)

domingo, 23 de dezembro de 2012

"Livro", de Fernando Guimarães

É diante de ti que se encontra; está aberto
sobre a mesa. Há muito que foi ali deixado para ficar
mais perto de nós. Sabes que nele pode existir
o vento, a cor indecisa das nuvens, o voo

das aves, aquilo por que esperas. À sua volta
vês a luz que tinhas acendido: há-de ser límpido
o sentido que chega em cada um das páginas
que leste. Sem que o possas saber, talvez haja

alguém cuja proximidade se torna mais tranquila
ao iniciar o seu caminho para que as palavras
se unam umas às outras e seja maior

o sentido que têm. Isto faz com que as compreendas
melhor. Depois ergues os olhos e um novo livro
principia.

(in Relâmpago. Revista de Poesia, 29-30; 2012)

(Uma recomendação)

(Este livro, comprado há já algum tempo e renovadamente adiado até ontem (ou, mais precisamente, até às duas da manhã de hoje), tem constituído uma muito agradável surpresa. Ler poesia galaico-portuguesa acarreta algumas dificuldades, é certo; o meu receio de ficar além da compreensão - talvez herdado dos tempos em que tive de enfrentar tal poesia nas certeiras da escola básica e secundária - fez-me preterir este livro em função de outro. Porém, chego agora à conclusão que o receio era injustificado. Esta edição da poesia de D. Dinis, da responsabilidade de Nuno Júdice, procura colocá-la "ao alcance de um público vasto", através de notas que facilitam a interpretação e de um glossário com alguns termos eventualmente mais obscuros. É, portanto, a sugestão que deixo aos leitores do poemapossivel).

sábado, 22 de dezembro de 2012

"Atira para o mar", de Renata Pallottini

Atira para o mar as tuas coisas
abandona os teus pais
muda de nome

esquece a pátria
parte sem bagagem
fica mudo e ensurdece
abre os teus olhos.

Se o teu amor não vale tudo isso
então fica onde estás
gelado e quieto.

O amor só sabe ir de mãos vazias
e só vale se for
o único projeto.

(in Brasil 2000. Antologia de poesia contemporânea brasileira; ed. Alma Azul, 2000)