sábado, 30 de julho de 2011

"Um fado: palavras minhas", de Pedro Tamen

Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos louco de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
— que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.

(in Retábulo das Matérias (1956-2001))

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Excerto do «Livro do Desassossego»

Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ser espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma capaz de sofrer.
Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que todos que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida… Mas a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra coisa se não deve matar alguém… Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. E uma das memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal, não é dele mas de um pensamento meu?

(in Livro do Desassossego)

terça-feira, 26 de julho de 2011

(Ciclo Chaplin)

(Não percebo nada de cinema - tal como não percebo nada de poesia. Nestes últimos dias, sem que aparentemente nada tenha contribuído para isso, cresceu em mim a vontade de rever alguns dos principais filmes de Charlie Chaplin. Por vezes, há que voltar à base - e Chaplin, de certa forma, está nos primórdios do cinema (de uma era em que o cinema mudo, apesar da aparição do sonoro, estava no seu apogeu), assim como o está também nos primórdios do meu contacto com o cinema - mesmo que visto na televisão. Revi "O Circo" (de 1928) com imenso prazer, e concluí o que provavelmente qualquer um conclui: Chaplin foi um génio como realizador, como actor, e como comediante. Seguem-se os seguintes filmes: "O Garoto de Charlot", "A quimera do ouro", "Luzes da Cidade", "O Grande Ditador" e "Luzes da Ribalta ").

domingo, 24 de julho de 2011

"Fontes", de Pedro Tamen

Na fonte, a terra
dá-se à terra.
A água é um abraço
que se dá a beber
e que nos cerra.

(in Retábulo das Matérias (1956-2001))

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Dois poemas de Jorge Reis-Sá, do seu mais recente livro

Não sei possível vida mais desinteressante
do que esta. Levantar pela manhã sem um único
objectivo, levar o corpo à segunda repartição
de finanças, corrigir impressos de gente ainda

mais desinteressante do que eu. Assim o espero.
De nada vale esperar. Têm filhos, dois cães, um
gato, meia dúzia de cágados a rebolarem-se à vez
no esterco da água. Venho à tardinha para casa.

Poder-se-ia pensar que a tempo de me ser útil.
Mas vejo televisão só para esperar, penso
nas famílias dos cágados, no Tico e no Fofinho

com o pêlo afagado pelas crianças. Ligo a internet,
engato mais uma desesperada e rapidamente no seu
corpo estes pensamentos tão impuros são nada.

* * *

Terei a coragem de Pavese para deixar
tudo preparado e partir? Um diário
com todas as indicações de que o fim
se aproxima e a passos muito largos,
a reunião de toda a poesia num original
devidamente encapado e pronto a ser
editado na Einaudi. Trabalhar cansa.

Aceito. Mas cansa mais não fazer nada.

(in Mulher Moderna)

terça-feira, 19 de julho de 2011

"Verdes Anos", de Pedro Tamen

Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.

(in Retábulo das Matérias (1956-2001))

quinta-feira, 14 de julho de 2011

(Rabih Abou-Khalil e Ricardo Ribeiro)


Rabih Abou-Khalil (oud) e Ricardo Ribeiro (voz), interpretando "Como um rio" (do álbum «Em Português» do músico libanês) na Gala de Declaração Official das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo (2009)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Outro poema de Dora Ribeiro

o poeta não existe

fora a vulgaridade se amontoa em histórias originais

o poeta não existe

coisa do nada
inimigo dos vizinhos
e de todos os desejos com nome

ele sabe que inexiste
por isso frequenta a poesia

(in o poeta não existe)

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Poema de Dora Ribeiro

a memória é vigarista pela manhã
quando os sentidos transitam inquietos
e o rosto
sentado em gestos e sonos
acomoda-se às coisas
e se deixa levar pela imaginação

(in o poeta não existe)

terça-feira, 5 de julho de 2011

"Estes lugares", de Jorge Gomes Miranda


Estes lugares permanecerão
muito depois de o homem ter desaparecido:
Castro Laboreiro, Serra da Arrábida,
Monsaraz e as ilhas dos Açores.
Apesar da inclemência do vento,
da devastação das máquinas
e da delapidante indústria do turismo,
estes lugares permanecerão
no tempo.
Já se encontravam aqui: sílabas
de um livro escrito numa língua
que fomos deixando de compreender.
Podemos ir, extinguir-se a nossa voz
na sombra dos séculos,
estes lugares permanecerão:
sementes
ou coros inextinguíveis
de um relâmpago.

(in A Hora Perdida)

domingo, 3 de julho de 2011

Poema de Rui Caeiro

Um sinaleiro invisível manda parar o trânsito
há uma pausa brutal no bulício da cidade
Soa a campainha da porta, entras furtiva-
mente, sorris acanhada e logo começas
a abandonar sapatos e a despir a roupa em gestos
sacudidos. Grande é a importância que me dás
Por momentos tudo vais trocar pelas minhas mãos

(in O Quarto Azul e outros poemas)

sexta-feira, 1 de julho de 2011

(Water Dances)


Cena de "O Quarto do Filho", obra-prima do realizador Nanni Moretti (2001).

(Longe da poesia)

(Os últimos dias têm sido pobres em leituras poéticas; o poemapossivel, por consequência, tem conhecido dias mais silenciosos. Vejo nas livrarias os livros que vão sendo publicados, folheio-os, leio alguns versos ou mesmo uns quantos poemas, mas nunca os trago para casa. Numa estante, algures, ainda tenho uns quantos livros por abrir; à cabeceira, talvez uma meia dúzia por terminar. Longe da poesia, vou respirando).