domingo, 29 de maio de 2011

"Dormes", de Mia Couto

Dormes.
Não há no mundo senão teu rosto.

O céu sob o tecto
espera comigo que despertes.

O meu único relógio
é a sombra imóvel no chão do quarto.

A curva da terra
em tua pálpebra desenhada:
no teu sono me embalas.

Dormes-me.

(in Tradutor de Chuvas)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Poema de «Te Quiero», de Carlos Lopes Pires

há muitos anos
que busco uma explicação
nos livros

nos olhos dos animais
nas pessoas que passam

no sentido que deve haver
em tudo o que se move

e até na chuva
e nas mãos que tocam a claridade
dos dias mais secretos

mas só tu és
a minha explicação

(in Te Quiero)

terça-feira, 17 de maio de 2011

"Azimuto a minha barca", de Pedro Tamen

Azimuto a minha barca
e o porto é onde já estou.
Esta chuva que me encharca
é a que nunca pingou.

Olho pra trás desasado
das asas que nunca tive.
Não há mudança de estado
na descida do declive.

Pedro que sou, reduzo
o sapato em que me meto
a moído parafuso
e a desgosto secreto.

Desalimento a certeza,
aperto a chave ao sorriso,
lavo a loiça, ponho a mesa,
falo faceto, agonizo.

(in Retábulo das Matérias, 1956-2001)

domingo, 15 de maio de 2011

"Flores", de Mia Couto

Ninguém
oferece flores.

A flor,
em sua fugaz existência,
já é oferenda.

Talvez, alguém,
de amor,
se ofereça em flor.

Mas só a semente
oferece flores.

(in Tradutor de Chuvas)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

"Nesta cadeira me sento", de Pedro Tamen

Nesta cadeira me sento,
é nela que me apresento,
mas menos do que me ausento,
tento, lamento, avelhento,
aqui me invento e rebento;
passo cordura de unguento
e alimento o alento
da vida de sono e pão.

Desta cadeira prossigo
para um outro nó pascigo,
já sem perigo nem abrigo,
amigo como inimigo,
com meu já perdido umbigo
de só nascer por castigo:
ali de vez eu te irrigo,
cintilante coração.

(in Retábulo das Matérias, 1956-2001)

domingo, 8 de maio de 2011

(Videotape)

(Para nós...)

Radiohead interpretando "Videotape", ao vivo em Tóquio (2008)

sábado, 7 de maio de 2011

"Deslição de Anatomia", de Mia Couto

Quase fui médico.
Cedo acreditei
ter inclinação.
Aconteceu, em menino,
frente aos compêndios escolares.
Fascinava-me,
no corpo humano,
o vocabulário em flor:
o suco gástrico,
o bolo alimentar,
o trânsito intestinal,
as papilas gustativas.

Ante o meu prematuro pasmo,
a professora vaticinou: vai ser médico!
Em casa, porém,
meu pai diagnosticou diverso:
não era a anatomia que me atraía.

Eu apenas amava as palavras.

Meu pai adivinhava.
E eu, de poesia, adoecia.

(in Tradutor de Chuvas)

sexta-feira, 6 de maio de 2011

"No mesmo sítio, a pedra", de Fernando Echevarría

No mesmo sítio, a pedra
perde o lugar.
E fica
à brisa, devagar,
e ao desamparo.
Mas quando a sombra passa nos teus lábios
a ordem volta rigorosa. A pedra
regressa funda a si.
E um rio corre
o movimento e o rumor da terra.

(in Obra Inacabada)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Soneto "Descalça de viver, andava sempre", de Fernando Echevarría

Descalça de viver, andava sempre.
Enchia a rua quando não passava.
Mas, se passava, desfazia o tempo
e apagava a rua, os homens e as lágrimas.

Nem ela própria já vivia dentro
de si. A roupa que levava
tinha uma cor de triste e pensamento
que não se sente e não se vê. E nada

dela se via que não fosse um vento.
Nem um silvo ou perfume a denunciava.
Sabia-se, de certo, que vivia

porque o dia, a certas horas se quedava
pronto, parado, como não sendo dia.
Ela, descalça de viver, passava...

(in Obra Inacabada)

domingo, 1 de maio de 2011

"Do amor", de Carlos Lopes Pires

Jamais um rio
consome mais que as suas margens.
Mas do amor,
quem dizer pode
as margens de cada rio?

(in A fuga das cidades. Os ensinamentos)