quarta-feira, 30 de julho de 2014

"Parábola da solidão", de Juan Manuel Roca

Quando se desdobrava a solidão,
Quando descia a sua máscara de proa,
Convidava-a para um passeio na praia.
Muitas vezes
Levei a solidão aos bailes
Ou ao grande concílio de solidões
Que se agride nos estádios.
Para não a ver maltratada
Uma vez levei-a ao alfaiate
No meio de fatos vazios.
O costureiro
Com a boca cheia de alfinetes
Como um boneco vudu,
Desdobrou na sua mesa um pano negro.
Tirou as medidas à arisca solidão
E traçou a giz o seu molde.
Tinha a mesma medida da minha sombra.
(in Os Cinco Enterros de Pessoa; trad. Nuno Júdice, ed. Glaciar, 2014)

terça-feira, 29 de julho de 2014

[a última bilha de gás durou dois meses e três dias], de Herberto Helder

a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra
[bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse
[nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a
[habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás,
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

"Arte do tempo", de Juan Manuel Roca

O tempo permanece
Apanhado entre os livros.
Por este prodígios de apreensão,
Heraclito continua a banhar-se
No mesmo rio,
Na mesma página.
Tu continuarás para sempre
Nua no meu poema.

(in Os Cinco Enterros de Pessoa; trad. Nuno Júdice, ed. Glaciar, 2014)

segunda-feira, 14 de julho de 2014

[eu não sei], de Carlos Lopes Pires

eu não sei
como é com as outras mães

mas a minha ensinou-me
a ver os pássaros como dantes
as árvores tinham

outras vezes
com as suas mãos
passava sobre as minhas dores
e ficavam pequenas rosas
que ainda hoje não entendo

e cuidou de mim nas minhas feridas
aconchegou-me nos dias frios

e nas noites de pavor e medo
mostrava-me um senhor numa cruz
e dizia-me que assim era também o seu amor

a mãe deu-me tudo

e quando um dia quis pagar-lhe
essa incomensurável dívida

já não estava

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

quinta-feira, 10 de julho de 2014

[lá está o cabrão do velho no deserto, último piso esquerdo], Herberto Helder

lá está o cabrão do velho no deserto, último piso esquerdo,
que nem o Diabo ousa
ouvi-lo
quanto mais os anjos do Senhor, os pintainhos!

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

"Numa estação de metro", de Manuel António Pina

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

terça-feira, 1 de julho de 2014

"A misericórdia dos mercados", de Luís Filipe Castro Mendes

Nós vivemos da misericórdia dos mercados.
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)