domingo, 29 de junho de 2014

[queria fechar-se inteiro num poema], de Herberto Helder

queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

quinta-feira, 26 de junho de 2014

(O homem do realejo)



Fica aqui a tradução do poema "O homem do realejo" de Wilhelm Müller (tradução de Maria de Nazaré Fonseca), que Franz Schubert musicou admiravelmente no seu ciclo A Viagem de Inverno (Die Winterreise):

Além, atrás da aldeia

Está um tocador de realejo
E com dedos rígidos
Ele roda o que pode.

Descalço sobre o gelo,
Vacila daqui para ali
e a sua pequena bandeja
está sempre vazia

Ninguém o quer ouvir
Ninguém olha para ele
E os cães rosnam
À volta do pobre velho.

E ele deixa correr
Tudo como Deus quer,
Ele toca, e o seu realejo
Jamais fica silencioso.

Estranho velho,
Devo ir contigo?
Queres tu tocar
As minhas canções no teu realejo?

quarta-feira, 25 de junho de 2014

[tão fortes eram que sobreviveram à língua morta], de Herberto Helder

tão fortes eram que sobreviveram à língua morta,
esses poucos poemas acerca do que hoje me atormenta,
décadas, séculos, milénios,
e eles vibram,
e entre os objectos técnicos no apartamento,
rádio, tv, telemóvel,
relógios de pulso,
esmagam-me por assim dizer com a sua verdade última
sobre a morte do corpo,
dizem apenas: igual ao pó da terra que não respira,
o que é falso, pois eu é que deixarei de respirar
sobre o pó da terra que respira,
entre o poema sumério e este poema de curto fôlego,
mas que talvez respire um dia,
ou dois, ou três dias mais:
quanto às coisas sumérias: as mãos da rapariga,
o cabelo da estreita rapariga,
a luz que estremecia nela,
tudo isso perdura em mim pelos milénios fora,
disso, oh sim, é que eu estou vivo e estremeço ainda

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

terça-feira, 24 de junho de 2014

[que um nó de sangue na garganta], de Herberto Helder

que um nó de sangue na garganta,
um nó de ar no coração,
que a mão fechada sobre uma pouca de água,
e eu não possa dizer nada,
e o resto seja só perder de vista a vastidão da terra,
sem mais saber de sítio e hora,
e baixo passar a brisa
pelo cabelo e a camisa e a boca toda tapada ao mundo,
por cada vez mais frios
o dia, a noite, o inferno, o inverno,
sem números para contar os dedos muito abertos
cortados das pontas dos braços,
sem sangue à vista:
só uma onda, só uma espuma entre pés e cabeça,
para sequer um jogo ou uma razão,
oh bela morte num dia seguro em qualquer parte
de gente em volta atenta à espera de nada,
um nó de sangue na garganta,
um nó apenas duro

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

"Os dias seguem-se aos dias", de Luís Filipe Castro Mendes

Cada dia contém uma nova ameaça,
por isso a nossa vida nunca está imóvel.
Mexes os braços durante a noite, quase acordas,
mas deixo-te respirar, sossega agora.
O dia vai trazer a sua carga de penas,
de culpas, de indefinidas faltas
por saldar.
Dorme, por enquanto. Amanhã é um novo dia.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

domingo, 22 de junho de 2014

[pai que foste o princípio da água], de Carlos Lopes Pires

pai que foste o princípio da água
e das viagens

de cujas mãos nasceram
as manhãs de geada com tudo dentro

e as coisas grandes e as rosas

enquanto envelhecia contigo
não sabia que tudo um dia é tarde
e arrefece

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

quinta-feira, 19 de junho de 2014

"Os Cinco Enterros de Pessoa", de Juan Manuel Roca

Poucas vezes sucede
Que ao morrer um poeta
Sejam necessários cinco caixões
Como poucas vezes sucede
Que um poeta seja morada
Para que nele vivam,
Para que trabalhem à sua vontade
E durmam quando quiserem,
Sem pagar renda,
Sem ameaças do senhorio,
Outros 4 poetas.
Ao enterro de Pessoa
Foram com sigilo,
Tal como viveram.
Nunca protestaram
Contra a estreiteza da sua moradia,
Esse peculiar viver dentro da gabardina.
Mas não desejariam mais espaço
Agora, na rigidez das formas?
Não se viu Pessoa em tertúlia
Com os seus 4 fantasmas cardinais.
Não se viu em grupo
A caminho da tabacaria,
Partilhando viuvezes.
Pessoa e os seus compadres.
E essa forma
De não se deixarem ver nos espelhos.

(in Os Cinco Enterros de Pessoa; trad. Nuno Júdice, ed. Glaciar, 2014)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

"Heimat", de João Almeida

Enquanto espero a subida das águas
Vou construindo de cabeça
O poema deste dia

Prédios para deitar abaixo
Escalpes de negócios clandestinos
Cães que hesitam a travessia

Os bárbaros chegaram
Governam com ferro e pandemias.

(in Resumo - a poesia em 2013; ed. Documenta, 2014)

"Perda", de Carlos Lopes Pires

Havia uma dor
a crescer no centro do coração.
Não era bem uma dor. Era mais
como uma pedra pesada
e dura
a bater no fundo.
Também não era no centro. Nem
no coração. Era na vida toda,
e era como o trilar dos grilos
nas noites de infância:

vidros que se quebram
à passagem das coisas.

Perdi o nome.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

terça-feira, 17 de junho de 2014

"Esplanada", de Manuel António Pina

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos verbos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

segunda-feira, 16 de junho de 2014

"Que a dor seja", de Carlos Lopes Pires

Que a nossa dor subida seja
em cada coisa procurada,

na parte íntima,
no miolo e na casca,

nas árvores,
nos quartos desarrumados
e nas dispensas,

nas coisas que se dizem
de um para outro lado,
de pais para filhos,

reclinada na almofada
a tua mão no livro,

oh, as coisas que se amam devagar,
os quintais, as laranjas, os balouços,

e que a nossa dor toda seja

cumprida, inteira, ampla,
guardada em cada passo e depois,

porque a nós chega o que é chegado,
e que a nossa dor seja como a água
e seja.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

"Nos teus olhos", de Carlos Lopes Pires

As vides
atam o homem à vida,
o meio da tarde une o sol,

a plena encosta contem a subida,
o todo é parte do nada,

e a casca tem o verão
que tu me deste cantarolando,

os meus pequenos gestos
caindo no lugar
onde o pássaro fez o ninho.

Oh, não me digas que sou triste:

diz antes que durmo
nas papoilas dos teus olhos.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

"Tanques", de Carlos Lopes Pires

Todos os tanques tinham alfaiates.
E todos tinham crianças
com espelhos na água.
E havia um limoeiro lá
dentro. Não havia onde

mas as papoilas.
E tu sabes algo e não dizes tudo.
As estações sucedem-se.
O tordo anda no coração

do mundo.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed Textiverso, 2014)

quinta-feira, 12 de junho de 2014

"Completas", de Manuel António Pina

(Publico estes versos no poemapossivel no momento em que dá uma partida de futebol, não interessa qual. Jogadores de diferentes continentes correm num retângulo de relva, rodeados de mil pessoas, de mil vozes e gritos. Correm como se nada mais existisse - mas existe. Um eco desse frenesim chega-me através do televisor que habita um canto da casa, aqui ao lado. Este poema é também ele um eco. E isso, por agora, basta-me.)

A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

terça-feira, 10 de junho de 2014

[Sozinho com as palavras], de José Carlos Soares

Sozinho com as palavras
apascento
a emancipada figura do destino.

A meus pés
estende o sol a sombra
traçada a viril negro
melancólico.

Voltado para a parece
teço
o pequeno milagre
do poema.

(in Resumo - a poesia em 2013; ed. Documenta, 2014)

segunda-feira, 9 de junho de 2014

"Nocturno", de Luís Filipe Castro Mendes

Cada poema tece a sua noite
e nessa noite ele irá ser escrito,
posto em palavras, face
à perdida música.

(in A Misericórdia dos Mercados; ed. Assírio & Alvim, 2014)

"Vinha na semente", de Carlos Lopes Pires

Só a tua mãe te amou,
e deu-te a morte que
vinha na semente,
e deitou-se sobre essa culpa,
e no fundo dessa rosa
colheu espinhos, mágoas,

e atravessou o animal deserto
que sufocava em ti
e nos teus dedos de papoila,

e amou-te tão
no seu cansaço vegetal. E dos dias
noites ela fez e não disse. Envelheceu
a amar-te tanto.
E levou-te a ver um mundo
onde tudo estava certo. E era certo
quando abria os braços
e tu subias ao coração da árvore.

Outras mulheres julgaram amar-te.
Mas só ela viu a cruz
que havia em ti, e só ela sabia dos
sinais, e só ela conhecia os teus
medos. Só ela, no seu silêncio
maior que todas as razões,
pressentia todos os teus segredos.
Com ela
não houve dívidas nem
contas.

(in Guarda-me contigo entre as papoilas; ed. Textiverso, 2014)