sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

"Aos meus óculos", de A. M. Pires Cabral

Se um dia vos partirdes, ficarei
mais à mercê do escuro.

Provavelmente não poderei então
nem ler nem escrever nem cortejar
as flores silvestres, as nuvens em castelo,
os pardais disputando uma migalha
— esses frustes amores de fim de tempo.

Deixarei de poder distinguir
um abismo dum simples degrau.

Por isso, vós que sois de vidro quebradiço
como o meu próprio barro,
cuidai-vos em nome de mim.
Paguei-vos, sois meus, deveis-me utilidade.

Faça-se em vós segundo
a minha vontade.

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

(Um par de haikus, de José Tolentino Mendonça)

Quando se extinguiu
o vermelho da papoila
o jardim ficou vazio

* * *

No ramo do marmeleiro
descubro nuvens
que não havia visto

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

"Desta maneira falou Ulisses", de Manuel António Pina

Falo por mim, e por ti me calo.
De modo que fica tudo entre nós.
Literatura que faço, me fazes.
(Ó palavras!) Mas eu onde estou ou quem?

É isso falar, caminhar? (Desta maneira falou) - Volto
para casa para a pátria pura página
interior onde a voz dorme o
seu sono que as lavras povoam.

Aí, no fundo da morte, se celebram
as chamadas núpcias literárias, o encontro do
escritor com o seu silêncio. Escrevo para casa.
Conto estas aventuras extraordinárias.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

[Em Deus tudo se assemelha], de José Tolentino Mendonça

Em Deus tudo se assemelha:
a tua prece e o canto
da rã

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

[Depois de uma tarde a tratar do jardim], de José Tolentino Mendonça

Depois de uma tarde a tratar do jardim
a nossa vida
importa menos

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

"Nenhuma coisa", de Manuel António Pina

Estou sempre a falar de mim ou não. O meu trabalho
é destruir, aos poucos, tudo o que me lembra.
Reflexão e, ao mesmo tempo, exercício mortal.
Normalmente regresso a casa tarde, doente.

Desta maneira (e doutras -
a carne é triste, hélas!, e eu já li tudo)
ocupo o lugar imóvel do poema. Procuro o sentido
(vivo ou morto!) para o liquidar. Mas onde? E como? E quem?

Tudo o que acaba e começa.
O que está entre as pernas, mudando de lugar.
(Que fazer e para quê?)

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

(Mais dois haikus de José Tolentino Mendonça)

Os que se assemelham a nada
assemelham-se
a Deus

* * *

Nas mãos do oleiro
o universo descobre-se
inacabado

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

"Palavras não", de Manuel António Pina

Palavras não me faltam (quem diria o quê?),
faltas-me tu poesia cheia de truques.
De modo que te amo em prosa, eis o
lugar onde guardarei a vida e a morte.

De que outra maneira poderei
assim te percorrer até à perdição?
Porque te perderei para sempre como
o viajante perde o caminho de casa.

E tendo-te perdido, te perderei para sempre.
Nunca estive tão longe e tão perto de tudo.
Só me faltavas tu para me faltar tudo,
as palavras e o silêncio, sobretudo este.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

(Dois haikus de José Tolentino Mendonça)

Podes interrogar a papoila
mas a papoila
nada responde

* * *

O silêncio
não é o oposto
mas o avesso

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

"Os tempos não", de Manuel António Pina

Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

(Lendo em voz alta, ou um verso de Herberto Helder)

Somente o meu silêncio pensa

(verso do poema "Lugar", I, in Ou o Poema Contínuo; ed. Assírio & Alvim)

[Silêncio], José Tolentino Mendonça

Silêncio:
contemplar a neve
até confundir-se com ela

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

[O silêncio só raramente é vazio], de José Tolentino Mendonça

O silêncio só raramente é vazio
diz alguma coisa
diz o que não é

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)