segunda-feira, 30 de setembro de 2013

"Poema", de Mário Cesariny

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

"shafftsbury avenue", de Mário Cesariny

Vi um anão inglês e fiquei perturbado
desceu-me a chávena ao peito como quem sofre
julgava ter olhos para tudo e não os tive para isto
um anão inglês a atravessar uma rua inglesa
com um fato à inglesa muito curto
e a mãozinha inglesa a dar a dar

Eu que ainda ontem escrevi um poema
sobre os tamanhos fantasmas dos ingleses
as pernas de oceano dos ingleses
os braços florestais dos ingleses
dei um salto para o chão e entornei a bebida sobre o pedinte
que afinal também há nas casas de chá barato

«Dwarf! Dwarf! burning bright»
«In the forest of the night»

Que nome lhe darão na intimidade?
Vic? Jimmy? Christian Dwarf Road?
Deixá-lo-ão sair para o estrangeiro sem ser de circo?
Quem já viu um anão inglês em Sintra?
Mérida?
Ferrara?
Quem apertou o sexo aos ingleses
e lhes pôs estas caras de infinito langor
apertou também a ti?

«Did He smile His worke to see?»
«Did He who made the Lamb make thee?»


Claro que isto são maneiras

Não vivo como o outro, preso pela espinha
aos caudais da verdade.
De um lado Buckingham Palace
do outro o caso do
profundamente humano.
E seria inglês, este anão?

Não seria italiano?

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

"you are welcome to elsinore", de Mário Cesariny



Poema dito por Adolfo Luxúria Canibal, com música de António Rafael


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte    violar-nos    tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas    portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

domingo, 8 de setembro de 2013

(Regressando à poesia: um verso apenas)

Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar


Herberto Helder
(verso de "Poemacto", I, in Ou o poema contínuo; ed. Assírio & Alvim, 2004)