quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Dois versos de Fernando Echevarría

Que ler é umbral de entrarmos no esquecido
que o gesto lento de folhear acorda.

(versos do poema "Livro", in Obra Inacabada; ed. Afrontamento, 2006)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Poema de Nuno Moura

é de origem entronca e de pais separos
e teve mais de noventa mil pessoas delirias
no estádio das antas para o lançamento
do seu último livro de poesia.

seguiu em turné por paranhos bessa
e depois são luis pelo sul
tendo uma andança de três ponto um milhões
só em vendas estádias.

somando a viagem recitária
as exportações para o resto do mundo
e o residual fotocópio
totobola para cima de quinze ponto sete milhões
de livros.

só em receitas publicitárias com a telecele pêtê cêpê
renô náique sequipe e ibêéle
fala-se de valores na casa dos champálimôs.

portugal é um país de poetas ricos.

a poesia dá dinheiro a portugal.

(in Ao Porto. Colectânea de Poesia sobre o Porto; ed. Dom Quixote, 2001)

sábado, 27 de outubro de 2012

"A ponte", de Octavio Paz

Entre instante e instante,
entre eu sou e tu és,
a palavra ponte.

Entras em ti mesma
ao entrar nela:
como um anel
o mundo fecha-se.

De uma margem à outra
há sempre um corpo que se estende,
um arco-íris.

Eu dormirei sob os seus arcos.

(in Antologia Poética; ed. Dom Quixote, 1998)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

"Do poema como contrato social", de José Tolentino Mendonça

Comércio bilingue, o poema precisa da troca,
sobretudo se inútil,
da espontaneidade de poucos, dessa ideia de passagem,
de derrocadas e do silêncio que lhes sucede,
precisa de descendências particularmente radicais
do relâmpago ou de um absurdo ainda maior
para se tornar próximo

O poema é conversa humana
palavra que recuperamos
ao abandonar

(in Estação Central; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

"O mapa", de José Tolentino Mendonça

aprendido num salmo sufi

Para os teus discípulos não há heresia
nem ortodoxia
Todos podem contemplar sem véus
a verdade que vem de ti

Insista o herético na sua heresia
e o ortodoxo na sua ortodoxia

O teu fiel é mercador de perfumes
em busca da essência de rosas
do amor divino
eu deambulo

(in Estação Central; ed. Assírio & Alvim, 2012)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

"Certeza", de Octavio Paz

Se é real a luz branca
desta lâmpada, real
a mão que escreve, são reais
os olhos que olham o escrito?

Duma palavra à outra
o que digo desvanece-se.
Sei que estou vivo
entre dois parênteses.

(in Antologia Poética; ed. Dom Quixote, 1998)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

"A ciência do amor", de José Tolentino Mendonça


O amor é um acordo que nos escapa
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria

Pensamos que quando chegasse as nossas vidas acelerariam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam

Um mês ou um século mais tarde
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam

(in Estação Central; ed. Assírio &; Alvim, 2012)

sábado, 20 de outubro de 2012

"Os justos", de José Tolentino Mendonça

Começam o dia louvando o imperfeito:
O tempo que se inclina para o lado partido
as escassas laranjas que se tornam
amarelas no meio da palha
as talhas sem vinho

Olham por dentro a brancura da manhã
e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício
louvam o vulnerável e o inacabado

Estão sentados à soleira dos espaços
trabalhados devagar pelo silêncio

Quando Deus voltar
não terá de arrombar todas as portas

(in Estação Central; ed. Assírio & Alvim, 2012)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

(Adeus, Manuel...)

Manuel António Pina (18/11/1943 - 19/10/2012)

TODAS AS PALAVRAS

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,

e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.
(Poema retirado do blogue da Assírio & Alvim)

"Isto é o meu corpo", de José Tolentino Mendonça

O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve

O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?

Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar

(in Estação Central; ed. Assírio & Alvim, 2012)