quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

(Lampejo)

(Após um silêncio de três ou quatro anos, recomeçou a escrever. Nada de relevo, diga-se, mas só o reaparecimento do impulso para jogar com as palavras o intrigou. Julgava ter-se aposentado o escrevinhador, ou mesmo estar morto, mas afinal não; de alguma forma parecia ter sobrevivido, e a menos que fosse uma aparição fulgurante, de imediato revelou a sua tendência para a catástrofe).

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Poema de Fiama Hasse Pais Brandão

Para a AJ

Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.

(in Âmago. Antologia; ed. Assírio & Alvim, 2010)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

"Tâmara", de Fiama Hasse Pais Brandão

Pura circunstância trazerem-me
num cesto levíssimo as tâmaras.
Com a boca peso três sílabas.
Com os olhos sou ávida.
Com as mãos repouso e saboreio
os frutos translúcidos.

(in Âmago. Antologia; ed. Assírio & Alvim, 2010)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

"A morte saiu à rua", de José Afonso

(O poemapossivel lembra José Afonso, no dia em que passam 25 anos do seu desaparecimento)



A morte
Saiu à rua
Num dia assim
Naquele
Lugar sem nome
P'ra qualquer fim

Uma
Gota rubra sobre a calçada
Cai

E um rio
De sangue
Dum
Peito aberto
Sai

O vento
Que dá nas canas
Do canavial

E a foice
Duma ceifeira
De Portugal

E o som
Da bigorna
Como
Um clarim do céu

Vão dizendo
em toda a parte
O pintor morreu

Teu sangue,
Pintor, reclama
Outra morte
Igual

Só olho
Por olho e
Dente por dente
Vale

À lei assassina
À morte
Que te matou

Teu corpo
Pertence à terra
Que te abraçou

Aqui
Te afirmamos
Dente por dente
Assim

Que um dia
Rirá melhor
Quem rirá
Por fim

Na curva
Da estrada
Há covas
Feitas no chão

E em todas
Florirão rosas
Duma nação

(in Textos e Canções; Assírio & Alvim, 1988)

domingo, 19 de fevereiro de 2012

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Poema de Fernando Echevarría

Cada dia nos dê o nosso pão
e comê-lo nos abra aquela casa
de inteligência e coração
onde sentar-se é mesa rasa

de ver quantos não estão
sentados nessa casa.
E comer se ilumina, e abre-se portão,
ou qualquer coisa de brasa

entra no movimento e na palavra,
como se cada gesto e cada som
fosse uma leitura que se abra

dentro da história de não haver senão
a de estarmos à mesa da palavra,
transparentes, à luz de se partir o pão.

(in Obra Inacabada; Afrontamento, 2006)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

"A meias", de João Luís Barreto Guimarães

Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás-de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo um cigarro e tu fumas
do meu cigarro dizes
«tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha» por isso
fumas do meu.
Dá-te gozo esse roubar de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo
a meias.

(in Poesia Reunida; Quetzal, 2011)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"Desculpas não faltam", de José Miguel Silva

Uma casa junto ao Vouga,
rio de água suficiente,
onde apenas se mergulha
até à cintura, a pequena horta
de Virgílio, o amor robustecido
por nenhuma esperança
e tantos livros para ler
- que desculpa vou agora dar
para não ser feliz?

(in Sérem, 24 de Março; Averno, 2011)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"A caminho do fogão", de José Miguel Silva

Adoro essa paixão absurda que tens por Hitchcock,
o ar despenteado com que chegas a casa e me dizes:
outra vez sopa de nabos; adoro a impaciência com
que me arrancas aos diálogos com o nada, quando
me contas os teus feitos na república do frio; adoro
a tua insónia, os teus escrúpulos morais, a tua esponja
de banho, o teu espírito lavado por agudos desenganos;
outrossim acompanhar-te nas perguntas sublinhadas
pelo tempo, e o teu corpo possuído pela mágica
da música amorosa, quando dança seminu à minha
frente e eu só penso: que bem feito está o mundo.

(in Sérem, 24 de Março; Averno, 2011)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

"Preocupações naturais", de José Miguel Silva

Eu não tinha muita coisa e hoje tenho
a soma dos teus passos quando desces
a correr os nossos treze degraus e
me prometes: até logo. Mas se
nada (ou só o nada) está escrito,
quem mais ama é quem mais tem
a recear. Com isso, passo as horas
num rebate de dramáticos motivos:
engano-me na roda dos temperos,
ponho sal na cafeteira, maionese
no saleiro, vejo o mel mudar de cor
e se me chama o telefone empalideço
como o rosto do relógio da cozinha.
Só sossego quando as gatas me garantem
que chegaste e posso então, aliviado,
unir-me ao coro de miaus que te recebe,
para mais uma noite roubada ao escuro.

(in Sérem, 24 de Março; Averno, 2011)