segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

(Um farrapo de prosa)

Era um iletrado, não sabia ler mas era capaz de cantar e, tal como o iletrado rouxinol, era muitas vezes o autor da sua canção.

(in Herman Melville, Billy Bud)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Dois haikus outonais de David Rodrigues

A chuva partiu
rasto de cristais de sol
a pingar das árvores.

* * *

Com mil olhos negros
a oliveira olha mansa
as aves que passam.

(in Estações Sentidas. 111 Haiku)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

"Cisne", de Fernando Echevarría

Vem dos olhos de Deus. Espuma
e exemplo vivo de nave.
Só levemente o perfuma
a forma de neve e ave.
Devagar abre-lhe o lago
o coração. E ao afago
de tanta beleza pura,
ergue-se tanta alegria
que se ignora se o que dura
é a luz do cisne ou é dia.

(in Obra Inacabada)

domingo, 23 de janeiro de 2011

Dois haikus de Dinis Lapa

Giro o globo
o dedo indicador
perde-se no Pacífico

* * *

Eu
e o cacto
fartos da chuva

(in De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea; org. David Rodrigues)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Haiku de David Rodrigues

graves, na duna,
eu e uma lagartixa
olhamos o mar.

(in De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea; org. David Rodrigues)
(ver ainda o blogue do autor: http://haikuportugal.blogspot.com)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

(Terceiro aniversário)

(O poemapossivel faz hoje três anos - o mesmo é dizer que o poema tem sido possível nestes três últimos anos. O que permanece e o que mudou? Permanece - seguramente - o gosto pela poesia, pela descoberta de novos autores, pela leitura (não só de poesia) e pelos livros; permanece o esforço por valorizar "as pequenas coisas" da vida, por procurar as várias tonalidades da beleza, mesmo quando, seja por factores exógenos ou endógenos, o contexto é o menos apropriado. Entretanto, mudou a nossa vontade de ter uma voz poética própria (sim, um dia tivemos essa ilusão...); e mudou ainda (alargou-se) a nossa expectativa de futuro. O poemapossivel conheceu momentos de incerteza, ou de menor dinamismo que o desejável - reflectindo as condicionantes da vida do autor do blogue -, mas resistiu. O que esperamos é que resista um dia mais, e ao dia a seguir a esse, e aos outros que lhe seguirão.)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Poema de Luís Quintais

Leitor,
eclipsam-se
teus difusos pensamentos,
eclipsam-se
as palmeiras,
os retratos,
os ternos animais,
as casas, as mãos.

Leitor,
de mágoa e vento
são tuas mãos.

Condenado ao oco,
breve, estás.

(in Verso Antigo)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Muito apreciei estes dois versos de Luís Quintais


Visitam o aquário. De improváveis cores é a vida.
Ictiológicas formas observam-nos.

(versos do poema "The Lady of Shangai", in Verso Antigo)

Dois haikus de Liberto Cruz

Onda a onda
O mar
Se anuncia.

* * *

Cada onda do mar
É um oceano
De mensagens.

(in De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea; org. David Rodrigues)

Um punhado mais de versos de Casimiro de Brito

Há dois anos que dormimos
na minha cama de homem
só. Não sobra
um palmo. Como se fôssemos
um corpo estreito e cheio de
cumplicidade. Talvez
sejamos. Quando viajamos
há sempre duas camas nos quartos
de hotel. E sempre deixámos
uma delas
intacta.

(in Arte Pobre)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

"Abraço", de Fernando Echevarría

A muitos mares de mim
estás tu. Estás a dois passos.
Muralhas. Ferros. Tem fim
a música dos meus braços?
Nó. A morte vem aí.
Entras por mim, eu por ti
à força do amor. Já só
o exemplo e a luz do espaço.
Apertámos tanto o nó
que fomos além do abraço.

(in Obra Inacabada)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

(Minimal)


Dustin Wong interpreta excerto de "Infinite Love", em Nova Iorque, em 2010.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

[Deus enrolava-nos vagarosamente], de Paulo José Miranda

Deus enrolava-nos vagarosamente
para acabarmos entre os seus dedos.
A esse seu prazer chamou tempo
e onde havia dor nasciam cigarros.
Pensou no fogo como sendo belo
de modo a morrermos maravilhados.


(in O Tabaco de Deus)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Mais dois poemas de Casimiro de Brito

Há quantos anos me sento
a ver o mar? Amor
sem falhas.

* * *

Cidade caótica -
a borboleta atravessa a rua
com o sinal vermelho.

(in Arte Pobre)

domingo, 9 de janeiro de 2011

Haiku de Albano Martins

Diz o vento
ao mar: sem mim,
não podes voar.

(in De frente para o mar. Poesia haiku contemporânea; org. David Rodrigues)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"Havia terra neles", de Paul Celan

Havia terra neles, e
cavavam.

Cavavam e cavavam, assim passava
o seu dia, a sua noite. E não louvavam a Deus,
que, segundo ouviam, queria tudo isto,
que, segundo ouviam, sabia tudo isto.

Cavavam e não ouviam mais nada;
não se tornavam sábios, não inventavam nenhuma canção,
não imaginavam qualquer espécie de linguagem.
Cavavam.

Veio um silêncio, veio também uma tempestade,
vieram os mares todos.
Eu cavo, tu cavas, e o verme cava também,
e aquilo que ali canta diz: eles cavam.

Oh um, oh nenhum, oh ninguém, oh tu:
para onde íamos que não fomos para lado nenhum?
Oh tu cavas e eu cavo, cavo-me para chegar a ti,
e no dedo acorda-nos o anel.

(in Casimiro de Brito, Na Barca do Coração; trad. Yvette K. Centeno)

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

"Como voltar feliz ao meu trabalho", de William Shakespeare

Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite me não deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Eles dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas:
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.
Mas dia a dia alonga-se a jornada
e cada noite a noite é mais fechada.

(in Casimiro de Brito, Na Barca do Coração; reescrito em português por Carlos de Oliveira)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

(O primeiro poema do ano pôs-me a pensar em ti)

Esta manhã esqueci-me
de tomar chá. Sinto ainda
a boca perfumada
dos teus beijos.

Casimiro de Brito
(in Arte Pobre)