quinta-feira, 30 de abril de 2009

"Liberdade", de Sophia de Mello Breyner Andresen

O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos

(in O Nome das Coisas)

segunda-feira, 27 de abril de 2009

E agora um excerto de "A Margem da Alegria", de Ruy Belo...

(...)
Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado
Quando te vejo e embora exista o vento
nenhuma folha nas múltiplas árvores se move
ver-te é logo todas as coisas começarem é
tudo ser desde sempre anterior a tudo
Ver-te é sem tu me veres eu sentir-me visto
sentir no meu andar alguma segurança mínima
caminhar pelo ar a meio metro da terra
e tudo flutuar e ser ainda mais aéreo do que o ar
ver-te é nem mesmo pensar que deixarei de ver-te
ver-te é sentir pousar mais que um olhar
uma mão muito calma sobre a minha vida
ver o teu rosto é ter toda a certeza de que existo
que sempre existirei que não há mais ninguém
ver o teu rosto é mesmo mais do que nascer
empreender viagens começadas nesse rosto
donde podem sair inúmeros navios
ver o teu rosto é como tudo começar
corrida a minudenciosa prega do silêncio
silêncio alto como um cerro inesperado como um curro
aéreo como um cirro denso como um cerro
prosaico às vezes como a mecânica de um carro
(...)

(excerto de A Margem da Alegria, in Todos os Poemas, vol. II)

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Excerto suculento de Al Berto

(...)
a queda da laranja provocará o poema?
a laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco?
e um louco, saberá o que é uma laranja?
e se a laranja cair? e o poema? e o poema com uma laranja a cair?
e o poema em forma de laranja?
e se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? a ficar louco?
e a palavra laranja existirá sem a laranja?
e a laranja voará sem a palavra laranja?
(...)

(versos de "Prefácio para um livro de poemas", in O Medo)

sábado, 18 de abril de 2009

Dois versos de um poema de Ruy Belo

"Pergunto e não quero que ninguém me responda
perguntar por perguntar pode ser a mais alta forma de saber"

(versos do poema "o Beneficiado Faustino das Neves", in Todos os Poemas, vol. III)

terça-feira, 14 de abril de 2009

"Harmonia", de Miguel Torga

Feliz canto das aves,
Sem possível
Compreensão;
Feliz rumo dos astros,
Sem possível
Desvio;
Feliz fúria do vento,
Sem possível
Arrependimento.

E feliz o poeta
Que ninguém lê.
Que sozinho contempla
O nascimento e a morte
Dos seus versos.
Pai acabado que no próprio corpo
Gera os filhos
E lhes dá ternura
Do berço à sepultura.

(in Poesia Completa, vol. II)

(I think images are worth repeating)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

"Pergunta", de Miguel Torga

(Estes versos, lidos pela manhã, fizeram evocar ao autor deste blogue uma certa fotografia recentemente vista...)

Peixe que voas, coração furtivo,
Onde vais como seta despedida?
Que ilusão te levanta, ou que motivo
Te pede as asas duma outra vida?

(in Poesia Completa, vol. II)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

quarta-feira, 8 de abril de 2009

"Dá-me um poema", de Malcolm Lowry

Dá-me um poema
Para despedaçar o coração dos homens
Puro como lâminas
Como o som de um relógio
Sobre o pântano.
Diz-me o significado, espectro,
E diz-me a hora
Em que me perco,
E em que quarto serei encontrado outra vez.
Dá-me o poder da minha mão
E que as minhas palavras sejam sãs
E fortes como o voo.
Conduz o meu aparo,
Ajuda-me a escrever,
Mostra-me as portas
Onde estão as ordens;
E a prisão
Que a minha alma contempla,
Onde a minha coragem
Ruge entre as grades.

(in As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar; trad. José Agostinho Baptista)

domingo, 5 de abril de 2009

"There is no poetry when you live there", de Malcolm Lowry

There is no poetry when you live there.
Those stones are yours, those noises are your mind,
The forging thunderous trams and streets that bind
You to the dreamed-of bar where sits despair
Are trams and streets: poetry is otherwhere.
The cinema fronts and shops once left behind
And mourned, are mourned no more. Strangely unkind
Seem all new landmarks of the now and here.

But move you toward New Zealand or the Pole,
Those stones will blossom and the noises sing,
And trams will wheedle to the sleeping child
That never rests, whose ship will always roll,
That never can come home, but yet must bring
Strange trophies back to Ilium, and wild!

(in As Cantinas e Outros Poemas do Álcool e do Mar)