sábado, 28 de março de 2015

[Sem vitória, vives comigo], de Paul Celan

Sem vitória, vives comigo
pequena
e carregada.

Só lá fora, onde
as nossas almas ainda estão, na terra de ninguém,
é que se canta. Canta-se
no brilho
daquilo que passou ao nosso lado.

Nem nuvem, nem estrela – nós
não olhamos para cima.

Chega-te mais, anda:
para que não sopre duas vezes o vento
através da nossa
casa aberta.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

quarta-feira, 25 de março de 2015

[Oiço tanta coisa de vós], de Paul Celan

Oiço tanta coisa de vós
que não oiço mais
do que ouvir,

vejo tanta coisa de vós
que não vejo mais
do que ver,

tanta coisa me assedia
com desconversa
que dou por mim a falar
com quem conversa,
que dou por mim
a falar como quem
fica em silêncio.

Eu vivo, forte.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

domingo, 22 de março de 2015

(Dois versos apenas, de Pablo Nerura)

Quero fazer contigo
o que a primavera faz com as cerejeira.
 
(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

quinta-feira, 19 de março de 2015

[Com o vento pelas costas], de Paul Celan

Com o vento pelas costas
morro e apago-me
na grande monção -
é então que verdadeiramente vivo.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

segunda-feira, 16 de março de 2015

[A dor dorme com as palavras, dorme, dorme], de Paul Celan

A dor dorme com as palavras, dorme, dorme,
Dorme e vai buscar nomes, nomes.
Dorme e a dormir morre e renasce.

Uma semente germina, sabias?
Germina, germina
uma semente da noite, nas ondas, um povo
começa a cescer, uma estirpe
da-dor-e-do-nome —: firme
e como que desde sempre submersa
e fiel —: a não-
-existente,
a viva
e minha, a
tua.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

sexta-feira, 13 de março de 2015

[Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela], de Pablo Neruda

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever, por exemplo: «A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe.»

O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a, e por vezes ela também me amou.

Em noites como esta tive-a eu nos meu braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi já.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.

Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, e ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a amo, é verdade, mas tanto que eu a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
a voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.

Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta a tive nos meus braços,
a minha alma não se contenta com havê-la perdido.

Embora esta seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

quarta-feira, 11 de março de 2015

"Grão-de-Lobo", de Paul Celan

Põe o ferrolho à porta: há
rosas na casa.

sete rosas na casa.

o candelabro de sete braços na casa.
O nosso
filho
sabe isso e dorme.

(Lá longe, em Michailowka, na
Ucrânia, onde
eles me mataram pai e mãe: que
floria aí, que
floresce aí? Que
flor, mãe,
te fazia doer aí
com o seu nome,
mãe, a ti,
que dizias grão-de-lobo, e não
lupino?

Ontem
veio um deles e
matou-te
outra vez no
meu poema.

Mãe,
mãe, que
mão apertei eu
quando com as tuas
palavras fui para
a Alemanha?

Em Aussig, dizias tu sempre, em
Aussig junto
ao Elba,
durante
a fuga.
Mãe, aí moravam
assassinos.

Mãe, eu
escrevi cartas.
Mãe, não veio resposta.
Mãe, veio uma resposta.

Mãe, eu
escrevi cartas a -
Mãe, eles escrevem poemas.
Mãe, eles não os escreveriam
se não fosse o poema que
eu escrevi, por
ti, pelo
amor
do teu
Deus.
Bendito, dizias tu, seja
o Eterno, e
louvado, três
vezes
Amen.

Mãe, eles ficam calados.
Mãe, eles consentem que
a ignomínia me difame.
Mãe, ninguém
cala a boca aos assassinos.

Mãe, eles escrevem poemas.
Oh,
mãe, quanto
chão do mais estranho dá o teu fruto!
Dá esse fruto e alimenta
os que matam!!

Mãe, estou
perdido.
Mãe, estamos
perdidos.
Mãe, o meu filho, que
se parece contigo.)

Põe o ferrolho à porta: há
rosas na casa.

sete rosas na casa.

o candelabro de sete braços na casa.
O nosso
filho
sabe isso e dorme.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

segunda-feira, 9 de março de 2015

[Aqui te amo], de Pablo Neruda

Aqui te amo.
Nos sombrios pinheiros desenreda-se o vento.
A lua fosforesce sobre as águas errantes.
Andam dias iguais a perseguir-se.

Desperta-se a névoa em dançantes figuras.
Uma gaivota de prata desprende-se do ocaso.
Às vezes uma vela. Altas, altas estrelas.
Ou a cruz negra de um barco.
Sozinho.

Às vezes amanheço, e até a alma está húmida.
Soa, ressoa o mar ao longe.
Este é um porto.
Aqui te amo.

Aqui te amo e em vão te oculta o horizonte.
Eu continuo a amar-te entre estas frias coisas.
Às vezes vão meus beijos nesses navios graves
que correm pelo mar aonde nunca chegam.
Já me vejo esquecido como estas velhas âncoras.
São mais tristes os cais quando fundeia a tarde.
A minha vida cansa-se inutilmente faminta.
Eu amo o que não tenho. E tu estás tão distante.
O meu tédio forceja com os lentos crepúsculos.
Mas a noite aparece e começa a cantar-me.
A lua faz girar a sua rodagem de sonho.

Olha-me com os teus olhos as estrelas maiores.
E como eu te amo, os pinheiros no vento
querem cantar o teu nome com as folhas de arame.

(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

sexta-feira, 6 de março de 2015

"A Morte", de Paul Celan

A morte é uma flor que só abre uma vez.
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora da estação.

E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.
Deixa-me ser o caule forte da sua alegria.

(in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio; trad. João Barrento, ed. Cotovia, 1998)

quinta-feira, 5 de março de 2015

[Meu coração partiu-se em quatro partes], de Luís Adriano Carlos

Meu coração partiu-se em quatro partes,
de acordo com as regras da ciência,
ficou a dor comigo, fico assim,
tudo me falta agora, o doce tom
dessa paixão ardente, as queimaduras
da alma. E nem sequer se despediu,
a negra dor me condenou. Ainda
não deixei de chorar meu coração,
que em quatro partes se partiu inteiro,
e já não posso amar a minha dama.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

terça-feira, 3 de março de 2015

[Também este crepúsculo nós perdemos], de Pablo Neruda

Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.

Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.

Às vezes como uma moeda
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.

Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que tu me conheces.

Onde estavas então?
Entre que gente?
Dizendo que palavras?
Porque vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?

Caiu o livro em que sempre pegamos ao crepúsculo,
e como um cão ferido rodou a minha capa aos pés.

Sempre, sempre te afastas pela tarde
para onde o crepúsculo corre apagando estátuas.


(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

segunda-feira, 2 de março de 2015

[Escrever o problema com mestria], de Luís Adriano Carlos

Escrever o problema com mestria
de gran compositor, e em figura
de confluir o excesso na experiência.
Depois que ao ritmo se comova o gesto,
a falta de um lugar por harmonia
exígua nos pedaços da estrutura.
Deste saber se faz uma ciência
lírica em cada nó, em cada resto
do problema: figura analisável
ao centro da engrenagem no papel.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)