quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

[Para que tu me ouças], de Pablo Neruda

Para que tu me ouças
as minhas palavras
adelgaçam-se por vezes
como o rasto das gaivotas sobre as praias.

Colar, guizo ébrio
para as tuas mãos suaves como as uvas.

E vejo-as tão longe, as minhas palavras.
Mais que minhas são tuas.
Vão trepando pela minha velha dor como a hera.

Elas trepam assim pelas paredes húmidas.
Tu é que és a culpada deste jogo sangrento.
Elas vão a fugir do meu escuro refugio.
Tu enches tudo, amada, enches tudo.

Antes de ti povoaram a solidão que ocupas,
e estão habituadas mais que tu à minha tristeza.

Agora quero que digam o que eu quero dizer-te
para que tu me ouças como quero que me ouças.

O vento da angústia ainda costuma arrastá-las.
Furacões de sonhos ainda por vezes as derrubam.
Tu escutas outras vozes na minha voz dorida.
Pranto de velhas bocas, sangue de velhas suplicas.
Ama-me, companheira. Não me abandones. Segue-me.
Segue-me, companheira, nessa onda de angústia.

Mas vão-se tingindo com o teu amor as minhas palavras.
Ocupas tudo, amada, ocupas tudo.

Vou fazendo de todas um colar infinito
para as tuas brancas mãos, suaves como as uvas.

(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

[A sabedoria é um dom de quem na tem], de Luís Adriano Carlos

A sabedoria é um dom de quem na tem.
Muitas maneiras há porém de a ter
e de a não ter: conforme os homens sejam
a ela dados ou furtados; con-
forme administrem o seu uso recto
entre os pares; conforme saber saibam,
e mais do que se aduz ainda. Tudo
se faz conforme para soluçar
o problema: de em nós haver o sábio
que outros deixam de ter, por nosso bem.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

[Delimitados somos pelos deuses], de Luís Adriano Carlos

Delimitados somos pelos deuses,
nesta figura breve de escrever
o traço em que buscamos infinito.
Assim seremos tudo, apenas tudo,
e o quanto imaginarmos no poema,
lábio fendido que se cava em céu,
de coração aberto ao pensamento.
E ainda a confluência determina,
delimitada a forma da figura,
que tudo recomece até ao fim.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

[Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas], de Pablo Neruda

Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas,
assemelhas-te ao mundo no teu jeito de entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.

Fui só como um túnel. De mim fugiam os pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra na minha funda.

Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e triste!

Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.

(in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada; trad. Fernando Assis Pacheco, ed. Dom Quixote, 12ª ed., 2003)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

[No corpo esvoaçam as ideias], de Luís Adriano Carlos

No corpo esvoaçam as ideias,
como se fossem pássaros perdidos.
Não se vêem as asas nem os vultos
inumeráveis no trajecto, só
as formas que desenham, geométricas
aparições mentais, e a ilusão
das aves que, perdidas, se parecem
a conjuntos de ideias. Da miragem
em tensas conversões, o corpo emana
abstracta figura, erecta e fria.

(in Invenção do Problema; ed. Quasi, 2ª ed., 2006)

domingo, 15 de fevereiro de 2015

(Depois de um longo silêncio)

O que dizer deste silêncio? Antes de mais, que não é inédito. Já anteriormente houve afastamentos mais ou menos prolongados da poesia e, consequentemente, deste poemapossivel (que, lembre-se, se alimenta de leituras). Como leitor com múltiplos interesses, nem sempre tenho a disposição necessária para ler poesia. Os dias vão-se somando aos dias, o ruído das rotinas e dos afazeres vai-nos atordoando, e quando damos por nós, já passaram semanas ou meses desde o último verso lido. Como é que isto aconteceu? Estarei surdo para a poesia? E agora, o que fazer?
Estou a escrever estas linhas porque hoje regressei à leitura de poesia e conto partilhar alguns poemas nas próximas semanas. Mas não sei o que o futuro me reserva. Presentemente tenho menos acesso a livros de poesia recentes, o que dificulta bastante um dos objetivos que propus a mim mesmo: acompanhar os novos poetas que vão sendo editados, ou as novas edições e reedições de poetas não novatos. Porém, isso não pode justificar a desistência e a não leitura, porque - penso eu - haverá sempre poemas para ler em algum lado, ou versos para revisitar.
Dito isto, não sei se está para durar o poemapossivel, espaço que conta com sete anos de existência. De quando em quando, não consigo fugir ao sentimento da inutilidade de manter este blogue (e a página no Facebook que lhe está associada), mesmo estando ciente que essa inutilidade (a real inutilidade do gesto de lançar versos ao "vento" da blogosfera, e a eventual - e espectável - inutilidade da poesia) serviu de mote para a sua criação. Se é inegável que tal sentimento por vezes desmotiva - e obsta a que não publique os poemas que vou lendo -, vou lutando com maior ou menor gosto.
No que respeito à minha condição de leitor de poesia, tenho que procurar o meu caminho. Em todo o caso, mantendo ou não este blogue, não quero ficar surdo.