sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

"o escritor estava a ter", de Rui Tinoco

o escritor estava a ter
uma conversa bastante
agradável. era verão.
a sombra crescia debaixo
do calor. para tornar
tudo mais prazenteiro, a brisa
veio fazer companhia. a dado
momento, o escritor
concedeu-se uma pausa: estendeu
a mão distraidamente
sobre a chávena morna. a conversa
estava a terminar e nem sequer
se tinha apresentado. que cabeça
a minha: escritor este é o leitor
leitor este é o escritor.

(in Era Uma Vez O Branco; ed. volta d'água, 2013)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

"«ponto final parágrafo»", de Rui Tinoco

«ponto final parágrafo»
quanto a mim, só consegui
responder: «re-ti-cên-ci-a», mas
muito baixinho. agora, que recordo
esta conversa, penso que nem
me ouviste. voltaste a insistir:
«exclamação»
«exclamação»
«exclamação».
não aguentei mais
tive de sair dali, titubeando:
«vírgula». por isso mesmo
acho que a nossa história
ainda não terminou.

(in Era Uma Vez O Branco; ed. volta d'mar, 2013)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

(Um novo livro)

(O poemapossivel não pode deixar de agradecer a amiga oferta deste livro pelo seu autor. Em breve, neste espaço, partilhar-se-ão alguns poemas.)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

"O que me vale", de Manuel António Pina

O que me vale aos fins de semana
é o teu amor provinciano e bom
para ele compro bombons
para ele compro bananas
para o teu amor teu amon
tu tankamon meu amor
para o teu amor tu te flamas
tu te frutti tu te inflamas
oh o teu amor não tem com
plicações viva aragon
morram as repartições

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

[A vastidão do mundo], de José Tolentino Mendonça

A vastidão do mundo
para o peregrino
não é mais do que um quarto vazio

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

"Amor como em casa", de Manuel António Pina

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

(O sol que apetecia...)

Ilustração (alterada) de Cristina Valadas, do livro Pó de Estrelas, de Jorge Sousa Braga
(Este inverno, repete a televisão, é o mais chuvoso dos últimos oitenta anos. Seja. Hoje, para não variar, chove; talvez por isso me tenha encantado de um modo especial este belo sol de Cristina Valadas, que coloquei num céu azul, quando percorria as folhas de um livro que aprecio bastante...)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

"Erosão", de A. M. Pires Cabral

Montes arredondados, de tão velhos,
que já destes pão e hoje dais cardos,

dizei qual erosão mais vos magoa:
se a que vos vem do alto
no uivo dos ventos e nas cordas de chuva

– se a do desuso agrário.

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

[Todo o inverno], de José Tolentino Mendonça

Todo o inverno
o solitário bambu
mediu forças com o vento

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

domingo, 9 de fevereiro de 2014

[Tudo é efémero], de José Tolentino Mendonça

Tudo é efémero:
ontem escutava a tua voz
hoje só o vento

(in A Papoila e o Monge; ed. Assírio & Alvim, 2013)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

"A poesia vai", de Manuel António Pina

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
- Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? -

(in Todas as palavras. Poesia reunida; ed. Assírio & Alvim, 2012)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

"Arte de gritar", de A. M. Pires Cabral

Quisera dizer coisas
que ninguém tivesse dito antes de mim.

Deixar uma pegada sobre a areia intacta,
não sobre outras pegadas que já houvesse lá.

Mas cheguei tarde; os que me precederam
no exercício desta dura arte de gritar

amavam a minúcia, a completude,
nunca deixavam uma tarefa a meio.

Disseram tudo. Deixaram só migalhas susceptíveis
de glosas rasteiras, para eu me entreter

como uma criança pobre brinca com destroços
de brinquedos recuperados do lixo.

E eu digo essas migalhas como quem
escreve a terra em laudas rasuradas.

E escrevê-las-ei mesmo quando
não tenha língua já para as dizer.

(Os poetas entendem-me estes mansos
trocadilhos. Os outros, não importa.)

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)