sexta-feira, 31 de maio de 2013

[Tão cedo passa tudo quanto passa!], de Ricardo Reis

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
        Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
        E cala. O mais é nada.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

quarta-feira, 29 de maio de 2013

"A edição inglesa", de Rui Pires Cabral

Na primavera de 1476
o jovem Leonardo da Vinci
escreveu no verso de uma carta
desesperada: If there is no love,
what then?
Escreveu-o, bem
entendido, no seu vernáculo
nativo – eu é que só tenho
a edição inglesa.

De quantas coisas
nesta vida, meu Deus, só tenho
a edição inglesa – quer dizer,
a precária, aproximativa
tradução? E que fazer
com estas noites de Junho,
se o amor, justamente,
é uma delas?

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

terça-feira, 28 de maio de 2013

[Que posso eu dar ao teu destino], de Fernando Pessoa

 (O número de arranque da revista Granta em Portugal inclui alguns poemas inéditos de Fernando Pessoa - os inéditos parecem não mais terminar, dirão os mais críticos, mas talvez estes aparecimentos ocasionais se devam ao facto de muitos dos papéis escrevinhados serem muito difíceis de decifrar. O poemapossivel publica um desses poemas, datado de 16/10/1929*)

Que posso eu dar ao teu destino? Nada.
Nem eu mesmo sou feito para dar.
Encontrei-te na curva de uma estrada
E esqueci-me da curva e do logar.

Se havias de mandar no meu andar,
Saberias a hora da chegada,
Nem tudo fica, como o chão, na estrada
E não ha mais que ver ou que buscar.

Perfeitamente conhecedor d'isto
O juizo humano em minha companhia
Não descobre a visão de que consisto,

E entre visões, aliás, a gloria passa
Como a ultima saudade que ha no dia
E o ultimo sonho, e a ultima desgraça.

* Se esta data estiver correta (existe a possibilidade de ser ler 6 e não 10 no mês), «(...) isto colocaria o poema em Outubro de 1929, mês em que Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz mantiveram correspondência, se namoraram ao telefone e se encontraram várias vezes».

(in revista "Granta", n.º 1; transcrição e notas de Jerónimo Pizarro e Carlos Pitella-Leite; ed. Tinta da China, Maio 2013)

segunda-feira, 27 de maio de 2013

[Não quero recordar nem conhecer-me], de Ricardo Reis

Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olhamos em quem somos.
        Ignorar que vivemos
        Cumpre bastante a vida.

Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
        Quando passa connosco,
        Que passamos com ela.

Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?),
        Melhor vida é a vida
        Que dura sem medir-se.

(in Poesia; ed. Assírio & Alvim)

domingo, 26 de maio de 2013

"Livre", de Manuel Paes

Na poesia sou livre
não preciso de acordo
livre no tema e na cor
na música, ritmo e tom

minhas palavras são livres
não servem qualquer senhor
conceito, sentença, noção

senhoras que saem de mim
só da minha solidão

se percam nos outros no mundo
nas pedras, rios e árvores
não precisam de voltar
pois jamais me encontrarão.

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

sexta-feira, 24 de maio de 2013

(Na estante, a aguardar leitura)

(Enquanto espero pela oportunidade de ler o novo livro, Servidões).

"Escrever depois de um dia de trabalho árduo", de Luís Filipe Parrado

Já não há maçãs
nem laranjas na fruteira

e o cesto do pão
está irremediavelmente vazio.

Ainda assim
escrevo,

ainda assim,
depois de um dia de trabalho árduo.

Depois de um dia de trabalho árduo
os poemas são de pele e osso

e parecem-se estranhamente
com listas de compras,

pão, laranjas,
maçãs,

coisas escritas à mão,
coisas de que precisamos para viver,

coisas em que pensamos só
quando nos fazem falta.

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

quarta-feira, 22 de maio de 2013

[Ardes-me no peito onde a custo], de Pedro Tamen

Ardes-me no peito onde a custo
o meu amor perpassa, e vai até
às loucuras do corpo
e às agruras da alma.
Ardes-me no minuto, no segundo,
na hora amaciada por olhos entrevistos,
ardes-me no sangue obstruído
e na certeza muda que me diz
que o coração existe.

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

[Guardarás numa caixinha virtual], de Pedro Tamen

Guardarás numa caixinha virtual
o que não fiz por ti,
a mão que não chegou à sobrancelha
que nem aflorou,
o beijo repetido nas palavras
sem que o tacto
o multiplicasse qual se desejava.

Nessa caixa de nada não tardará depois
a não estares só tu,
a não estar só eu,
a estarmos só os dois.

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

sexta-feira, 17 de maio de 2013

"Grande Circo de Montekarl", de José Miguel Silva

Não gosto especialmente de circo, mas como não há
mais nada e uma pessoa tem de se entreter com alguma
coisa, cá vim. Confesso que me atraiu sobretudo o número
da Grande Conflagração do Capitalismo, anunciado
em letras vermelhas no cartaz. A questão que se põe é:
a que horas começa? Pergunto, ninguém sabe.

Francamente, isto nem parece uma produção americana.
Estamos aqui de pé há sei lá quantas horas e nada sai
do ramerrão: entram palhaços, saem palhaços, uns mais
ricos, outros menos, mas todos iguais, todos sem graça.
Já nem os posso ver. E domadores de caniches,
burricos, cantilenas de latão. Isto põe-me doente.

Agora são os comedores de fogo. Que seca do caralho.
Só nos falta um mágico – pronto, para que é que eu falei.
Mais valia ter ficado em casa. Mas a culpa é minha –
bilhetes tão baratos, devia ter desconfiado. Podia tentar sair,
mas como, se nem consigo ver a porta? E sair para onde?
Para o frio da noite? Estamos bem fodidos.

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

[Como se estende a minha mão], de Pedro Tamen

Como se estende a minha mão
ao longe do cabelo
e à boca resoluta?
Os ares brilham de fogo
e o fogo aquece
esta pele que te dou
na pele que tu me dás.

Nem se pergunta mais:

no minuto milagre
é vasta a geografia
e a pele é uma.

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Poema de Pedro Tamen

Cantas. Não sei bem onde,
mas atravessas as paredes da casa
e do coração. O amor indetectado
lança notas da música da terra
– não a das estrelas, que não há.

Cantas. E o universo é uno,
é uno neste verso.

(in Rua de Nenhures; ed. D. Quixote, 2013)

sexta-feira, 10 de maio de 2013

"Ainda a rainha depois de morta", de Armando Silva Carvalho

Arranca corações, esse punho cruel
que vem fustigando a história
dos amantes e chega até aos púlpitos, tronos,
e matérias de arte.

Na pedra burilada, os anjos muito agudos
pecam por desvelo.
Nas naves ressoa o bramar enrolado em raiva
da realeza sepulta:
eu amei-a viva, vocês venerem-na morta.

Foi um punho cruel.
Talvez houvesse um sexo absoluto em tanto movimento
de ouro, brocado,
soluços ébrios de temor ou de outra natureza
mais embevecida.

A história neste caso é sedutora:
traz o poder ao sol duns seios, à luz duma vagina,
abre a flor dos sentidos, desfeita
a golpes de espada,
de traição.

Aqui neste frio erguido ao redor das naves
a matéria humana
que percorre viva a tarde histórica
tem pressa de fugir
ao pesadelo:
o amor não mata, ninguém o assassina,
é ele e só ele que se expõe
já morto.

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Dois curtos poemas de António Ramos Rosa

O poema deve
aparecer
como um objecto supérfluo
e surpreendente

* * *


Vivi tanto
que já não tenho outra noção
de eternidade
que não seja a duração da minha vida

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Poema de Alberto Pimenta

ao que parece
parece que
os poetas
dizem o que dizem
diz um poeta

segue-se
ao que parece
segundo o mesmo poeta
que os poetas
dizem o que dizem
mas o que dizem
não quer dizer
o que dizem

os especialistas
uns dizem
que alguns poetas
querem dizer o que dizem
e outros
não

ora
quem sou eu
para discordar
de facto
também me parece
que muitos poetas
não querem dizer
o que dizem
quando dizem
o que querem

outros sim
quer dizer
pelo contrário
não dizem
o que querem
mas querem dizer
o que dizem

por exemplo
quando
le nouveau bec
d'assurancetourix

diz
que mais vale
uma ordem injusta
que a desordem
eu sei tu sabes ele sabe
que é isso
que le mec quer dizer

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)