sábado, 27 de março de 2010

"Romance", de Pero de Andrade Caminha

Desque me parti de ver-vos
Tenho quanto mal mereço
Pois m'aventurei senhora
A quanto sem vós padeço,
Co que passo e co que sinto
A mi mesmo desconheço
Somente em tristezas vivo
Nenhum prazer já conheço,
Com cuidados sempre acordo
Com cuidados adormeço,
Sonhou cousas espantosas
Nunca quieto amanheço,
com mil medos passo o dia
Com mil medos anouteço,
Acho-me sempre entre tristes
Nunca entre alegres pareço,
Tudo o que me faz mais triste
É ante mim de mor preço,
As mágoas que mais me seguem
Contra mim as favoreço,
O que soía alegrar-me
De todo agora avorreço
Vou-me ò longo d'ũa praia
Porque ali mais m'entristeço
Coas ágoas que m'apartaram
Dos olhos a que odebeço
Em sofrer danos sem fim
A que eles deram começo,
Se quer alguém consolar-me
Logo lhe desapareço,
Quando a saudade mais segue
A mim me desfavoreço,
E o peito todo lhe entrego
Toda a vida lhe ofereço
Por ver se com sua força
De minhas forças faleço,
Mas a morte não me quer
De novo em meus danos creço,
E porque os sinto por vós
Nunca lhes desobedeço,
Ergo a vós os pensamentos
Mas logo deles me deço,
Que entre tantas maravilhas
De todo logo esvaeço,
Co que em mim sinto e em vós vejo
Cuido de mim que endoudeço,
Mas inda que este bem me falta
Inda mal que o desmereço.

(in 366 Poemas que Falam de Amor; org. de Vasco Graça Moura)

terça-feira, 23 de março de 2010

"«Nunca se sabe»", de Rui Pires Cabral

Papéis velhos com poemas: são o joio
das gavetas. Relê-los causa aversão
e uma espécie de tristeza arrependida -
são tão nossos como as más recordações
e ainda vemos a circunstância precisa,
a causa, a ferida, por detrás de cada um.

Mas na altura havia esperança: é isso
que representam. Não pelas coisas que
dizem - é só descrença e fastio - mas
pela simples razão de termos querido
guardá-los. Com um pouco mais de alento,
de inspiração e trabalho, ainda se endireita
isto. Ou seja, os versos. E até a vida.

(in Resumo - a poesia em 2009)

segunda-feira, 22 de março de 2010

(Para te dizer)

(Neste dia, queria ser original, dizer-te o que tu sabes com as palavras mais bonitas. Pensei deixar esquecida uma maçã nos degraus de tua casa - assim podias morder de novo a primavera como se fosse a primeira; e se depois te falasse em outonos, ou mesmo invernos, sentirias agigantar-se dentro de ti um "I do". Queria ser original; não estando ao meu alcance, procurei ser genuíno.)

sábado, 20 de março de 2010

"A andorinha ou Tudo é relativo", de A. M. Pires Cabral

Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convém-lhe adjectivos como grácil.

Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.

(in Resumo - a poesia em 2009)

quarta-feira, 17 de março de 2010

"Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas", de Ana Marques Gastão

Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas
e eu partir não quero, porque esta é a noite
que ilumina o dia, canto do silêncio, eco subtil
no discurso do mundo. Quando pela noite chegas
é meu o teu amor, e a morte tarde doce como mel.

(in 366 Poemas que Falam de Amor; org. de Vasco Graça Moura)

quarta-feira, 10 de março de 2010

"Sono de Primavera", de Jorge Sousa Braga

(A Primavera chega no dia vinte e um - ou vinte e dois, depende da perspectiva).

Adormeço sempre com o teu mamilo
entre os dedos da minha mão
E o meu sono é tranquilo
como o das rosas

(in 366 Poemas que Falam de Amor; org. de Vasco Graça Moura)

terça-feira, 9 de março de 2010

"Um caranguejo tinha a mania", de Helder Moura Pereira

Um caranguejo tinha a mania
que era escritor. Escreves porquê?
Para pôr um arco de oiro
na minha vida breve. Falava,
como se vê, a linguagem
dos caranguejos. Para passar o tempo
que falta até vir a maré alta, para
proteger do sal as trevas
e combinar as luzes do sol
com as luzes da água, para deixar
gravado no ar o ar apertado
entre duas tenazes, para iluminar
o canto do meu andar viciado.

(in Os Poemas do Coelho Ramon)

domingo, 7 de março de 2010

E ainda outro poema de Maria Ângela Alvim

Estar ser auxílio. Pensa
só estar sem movimento
de amor, de medo, querença.

E ficar, deixando o espaço
de lembrança, alheamento
de mim, entre idéia e passo.

E durar, quase num sonho
de si mesmo descoberto
conter-me no meu tamanho
de ser tudo e ser deserto.

Permanecer - e me oponho
no tempo, domínio incerto.
Espero? Não. Ah!, que estranho
estar sonhando tão perto.

(in Superfície, Toda Poesia)

quarta-feira, 3 de março de 2010

Outro poema de Maria Ângela Alvim

Esta idéia que pretendo
me afirma, quando me vem,
na mentira de que sendo
serei mais de que ninguém.

Meu ser móbil, despiciendo,
não encontro em mal ou bem,
mas no que fui, sempre sendo,
mais do que sou, sendo alguém.

Assim o tempo me trai
as horas que vou colhendo
em passado subtrai.

Que resta da vida, ao fim,
de extinguir-se me perdendo
na ilusão que há de mim?

(in Superfície, Toda Poesia)

(Um pouco de Música Antiga)


Jordi Savall & Hespèrion XXI interpretando "Pavana & Gallarda", de Inozzenzo Alberti (1535-1615)

terça-feira, 2 de março de 2010

"As casas vieram de noite", de Luiza Neto Jorge

As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas

(in Cem Poemas Portugueses sobre a Infância; org. José Fanha e José Jorge Letria)