quinta-feira, 29 de maio de 2008

"Adoeço como quem dorme, mas não me ficou na boca", de José Rui Teixeira

Adoeço como quem dorme, mas não me ficou na boca
o que dizer-te, apenas a reminiscência do teu útero
ou clepsidras encostadas a um domingo qualquer.
Observo fotografias como quem filtra o instante
que antecede a morte e conto histórias para não esquecer
que a vida é algo que se perde à medida que as palavras
se gastam em escrituras hieráticas que já não sabemos
decifrar. Imagino lírios a crescer sobre o calor fétido
do meu corpo em decomposição e crianças a brincar
por perto, sob as ramagens frondosas de árvores
antigas, sem saber que um pêndulo realiza um movimento
isócrono, sem saber que me doem mais estigmas
na memória que pústulas no corpo ou que mastiguei
o tempo como quem pacientemente espera a morte.

(in Melopeia)

quarta-feira, 28 de maio de 2008

"Chapim Rabilongo", de Jorge Sousa Braga

Tem a plumagem negra__branca
e cor-de-rosa__um bico pequeno

e uma cauda maior que o corpo.
Alimenta-se de insectos. Este

chapim descobri-o num
manual de ornitologia e foi

o meu companheiro durante
todo o dia.

(in Porto de Abrigo)

terça-feira, 27 de maio de 2008

"Al Berto", de Jorge Pimentel

Estilhaçou Éolo a toutinegra
Que cantou e roubou alegria,
Mas das luzes dos véus virão
Os relógios em movimentos vis.

A cicuta deseja o esbelte corpo,
Primeiramente, embebeda-te,
Depois empurra-me para o louco
Precipício ou mistério do mar.

O dia caminha para a barca
Ao gizo vermelho ou branco
Ou talvez incolor, mas vai...

Procura teimosamente os óculos
Não deixes de ver as águas,
Nem incendiar as unhas rígidas.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

"Explicação da gravidade", de Daniel Faria

A lei das coisas é tombar
Interrogando-se:
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.
O homem pensa que nada é mais profundo
Que depois de Deus os filhos e os sismos.

(in Poemas)
Sítio na internet: www.danielfaria.org

domingo, 25 de maio de 2008

Poema de amor do Antigo Egipto

Quando me dá as boas-vindas
De braços bem abertos
Sinto-me como aqueles viajantes que regressam
Das longínquas terras de Punt.

Tudo se muda; o pensamento, os sentidos,
Em perfume rico e estranho.

E quando ela entreabre os lábios para beijar
Fico com a cabeça leve, fico ébrio sem cerveja.

(in Poemas de Amor do Antigo Egipto, tradução de Hélder Moura Pereira)

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Autopsicografias

Il poeta è un fingitore.
Finge così completamente
che arriva a fingere che è dolore
il dolore che davvero sente.

E quanti leggono ciò che scrive,
nel dolore letto sentono proprio
non i due che egli ha provato,
ma solo quello che essi non hanno.

E così sui binari in tondo
gira, illudendo la ragione,
questo trenino a molla
che si chiama cuore.

Tradução para italiano de Antonio Tabucchi

* * *

The poet is a faker
Who’s so good at his act
He even fakes the pain
Of pain he feels in fact.

And those who read his words
Will feel in his writing
Neither of the pains he has
But just the one they’re missing.

And so around its track
This thing called the heart winds,
A little clockwork train
To entertain our minds.

Tradução para inglês de Richard Zenith

* * *

El poeta es un fingidor que finge constantemente,
que hasta finge que es dolor, el dolor que en verdad siente.
Y, en el dolor que han leído, a leer sus lectores vienen,
no los dos que él ha tenido, sino sólo el que no tiene.
Y así en la vida se mete, distrayendo a la razón,
y gira, el tren de juguete que se llama el corazón.

Tradução para castelhano de Ángel Crespo

quarta-feira, 21 de maio de 2008

"Encantar-te-ás com os poetas até conheceres um", de José Luís Peixoto

Encantar-te-ás com os poetas até conheceres um.
Com calças de poeta, camisa de poeta e casaco
de poeta, os poetas dirigem-se ao supermercado.

As pessoas que estão sozinhas telefonam muitas vezes,
por isso, os poetas telefonam muitas vezes. Querem
falar de artigos de jornal, de fotografias ou de postais.

Nunca dês demasiado a um poeta, arrepender-te-ás.
São sempre os últimos a encontrar estacionamento
para o carro, mas quando chove não se molham,

passam entre as gotas de chuva. Não por serem
mágicos, ou serem magros, mas por serem parvos.
A falta de sentido prático dos poetas não tem graça.

(in Gaveta de Papéis)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

"E por vezes", de David Mourão-Ferreira



E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

domingo, 18 de maio de 2008

Never give all the heart / Nunca entregues o coração

Never give all the heart

Never give all the heart, for love
Will hardly seem worth thinking of
To passionate women if it seem
Certain, and they never dream
That it fades out from kiss to kiss;
For everything that's lovely is
But a brief, dreamy, kind delight.
O never give the heart outright,
For they, for all smooth lips can say,
Have given their hearts up to the play.
And who could play it well enough
If deaf and dumb and blind with love?
He that made this knows all the cost,
For he gave all his heart and lost.

W. B. Yeats

* * *

Nunca entregues o coração

Nunca entregues o coração todo, porque o amor
Nem será digno de consideração
Para as mulheres apaixonadas se lhes parecer
Certo, e elas nunca imaginam
Como se esvai de beijo em beijo;
Porque tudo o que é aprazível é
Apenas um breve deleite, gentil e sonhador.
Oh, nunca entregues o coração sem volta,
Pois elas, apesar do que dizem com lábios suaves,
Entregaram ao jogo seus corações.
E quem saberia ainda jogar bem
Se estivesse surdo e mudo e cego de amor?
Este que isto escreve fala do que é seu
Porque entregou o coração todo e perdeu.

Versão de Pedro Mexia (in Avalanche)

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Dois haikus de Issa Kobayashi


Imperfeito este mundo
E contudo
Recoberto de flores

* * *

A neve cai -
Estou aqui
Só por estar

(in Primeira Neve [haikus] , versões de Jorge Sousa Braga)

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Outro poema de Carlos Edmundo de Ory (mudado para português por Herberto Helder)

Três coisas


Cansado já de tudo
Cansado de amar
Nada mais tenho que um modo
de existir respirar

Já não sei aonde ir
Nem sei de onde venho
Queimei-me de existir
Cinzas agora tenho

Perdi meu coração
Paguei-o como peça
de fogo enfim carvão
Tornada fumo a cabeça

Persegui como um cego
três coisas sem piedade
respiração e depois
prazer e obscuridade

(in Doze Nós numa Corda)

terça-feira, 13 de maio de 2008

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Poema de Carlos Edmundo de Ory (mudado para português por Herberto Helder)

A minha boca é uma chaga
O meu trabalho é silêncio
Eu e a noite dormimos juntos
e nunca dormimos

(in Doze Nós numa Corda)

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Discos Pedidos

O poema do José Luís Peixoto, anteriormente publicado sob outra forma.

* * *

Não há motivo para te importunar a meio da noite,
como não há leite no frigorífico, nem um limite
traçado para a solidão doméstica.

Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece
antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens
direito a um subsídio de paz.

Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te
importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas
de manhã cedo.

Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o
direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa
evidência me matar agora.

E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?

Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda
mais comprida, com a insónia, com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.

(in Gaveta de Papéis)

"Se isto é um homem", de Primo Levi

Lembro muitas vezes o Holocausto, e aquelas imagens brutais de corpos nus amontoados, mortos ou semi-vivos. Lembrei hoje na viagem de regresso a casa, enquanto pensava no que o homem pode fazer ao homem... Aqui publico o poema do escritor Primo Levi, sobrevivente do Holocausto - se é que é possível sobreviver-se aos genocídios...

* * *

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

(in Se isto é um homem, tradução de Simonetta Cabrita Neto)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

"Zeitgeist", de Fernando Pinto do Amaral


Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.

Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, pra conservarem
o equilíbrio físico e mental.

Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.

Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
pelo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa - ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.

(in Poesia Reunida, 1990-2000)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

"Peregrino e Hóspede sobre a Terra", de Ruy Belo

Meu único país é sempre onde estou bem
é onde pago o bem com sofrimento
é onde num momento tudo tenho
O meu país agora são os mesmos campos verdes
que no outono vi tristes e desolados
e onde nem me pedem passaporte
pois neles nasci e morro a cada instante
que a paz não é palavra para mim
O malmequer a erva o pessegueiro em flor
asseguram o mínimo de dor indispensável
a quem na felicidade que tivesse
veria uma reforma e um insulto
A vida recomeça e o sol brilha
a tudo isto chamam primavera
mas nada disto cabe numa só palavra
abstracta quando tudo é tão concreto e vário
O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
pois eu nunca estou bem aonde estou
nem mesmo estou sequer aonde estou
Eu não sou muito grande nasci numa aldeia
mas o país que tinha já de si pequeno
fizeram-no pequeno para mim
os donos das pessoas e das terras
os vendilhões das almas no templo do mundo
Sou donde estou e só sou português
por ter em portugal olhado a luz pela primeira vez

(in Todos os Poemas, vol. II)

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Excerto de "A Passagem das Horas", de Álvaro de Campos

(...)
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de carácter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
(...)